Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Iole de Freitas

Dançar a sua obra ou a escrita do movimento Iole de Freitas, Roberto Alban galeria, Salvador, maio de 2016

Marc Pottier

Uma mulher, artista, brasileira que domina o espaço: Antes de mais nada, gostaria de relembrar que Iole de Freitas é mulher e artista. Ela foi casada com um artista. Ela é brasileira nascida em 1945. Esta constatação é longe de ser banal. Não posso deixar de pensar naquele retrato liliputiano (nas suas próprias palavras ao ver a imagem) dela em frente da escultura gigante de mais de cinco metros de altura pela mesma largura que ela produziu em 1991 na Capela do Morumbi em São Paulo. Contrariando as tendências dominantes ?falocêntricas? que mencionou Jacques Derrida, inclusive no mundo da arte, e considerando também que Iole é uma artista que faz parte de uma geração para a qual o Brasil, apesar da instauração do Bienal de São Paulo, ainda não estava inserido nos itinerários traçados pelos profissionais da arte, esta fotografia consegue resumir a incrível energia e criatividade que ela vive. A produção de uma obra que não podia existir, exceto por ela. Esta foto é uma entre tantas outras. Basta folhear a sua biografia para ver como esta artista sempre enxergou de uma forma grandiosa e generosa. Ela expôs instalações-obras onde a matéria vive e respira, nos quais as paredes dos museus que a tinham convidado ficavam incapazes de as conter e terminavam as vezes sendo atravessadas. Ela sabia como tornar os muros transparentes e frequentemente os furava para melhor desenvolver a sua obra na parte externa. Na sua última exibição no MAM do Rio de Janeiro em 2015/16 suspendeu os seus grandes desenhos (como se pode também pensar as suas esculturas) e nos revelou aquela nova escritura do movimento que ela inventa, parecendo ignorar as restrições tanto do peso das matérias que ela utiliza quanto do espaço monumental do museu.

Lembramo-nos que a história das primeiras vanguardas femininas do século XX, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, estruturou-se de uma forma completamente independente dos grandes movimentos artísticos dominantes. Porém, nenhuma revolução plástica foi estranha às mulheres: fotografia, vídeo-arte... antes mesmo dos homens elas investiram também na dança e na performance como espaço multidisciplinar. Tendo sido sempre presentes na origem das novas tecnologias, elas foram pioneiras da arte digital. As mulheres (re)tomaram a palavra. A sua dominação da sua própria modernidade e da invenção do seu futuro pode ser vista da perspectiva do desenvolvimento progressivo ou radical das disciplinas plásticas, da dança e do teatro. Isso favoreceu ações que consideravam o corpo como obra d?arte. O Brasil, precisaria esperar até o final dos anos 60 para encontrar as experimentações de Lygia Clark ou de Lygia Pape.

Iole de Freitas, só ela parece se lançar sem barreiras na sua obra de uma forma que nos libera de qualquer engajamento feminista militante, sexual, conceitual ou imaterial. Ela não tem raiva. Mas há uma força, um tipo de força que parece impossível contrariar. Iole de Freitas avança sem limites, imperturbavelmente. Se ela fica muito presente fisicamente, o que ela reivindica do corpo é tudo metafórico, sútil, restrito às sensações. O corpo, sempre presente, fica, entretanto, sempre invisível. Esta nova escritura original do movimento, de uma dança original, que ela nos propõe, estas esculturas-desenhos citadas acima, são obras de uma escultora incrível do espaço, onde ela banca tudo que ela é.

Iole lembra outra grande artista, Louise Nevelson:

«Acredito que as pessoas não se dão conta do sentido do espaço. Elas acham que o espaço é algo vazio. Na verdade, dentro do nosso espírito e dentro da nossa projeção de nós mesmos dentro deste mundo tridimensional, o espaço desempenha um papel essencialmente vital na nossa existência. A sua concepção do que você coloca num espaço cria de novo um outro espaço. Pode-se ver uma pessoa entrar num lugar e dominar o espaço. O espaço possui uma ambiência e o que você coloca dentro do mesmo proporciona aos seus pensamentos e à sua consciência uma certa cor.?

Em Iole de Freitas, a obra domina o Espaço. Porém, por domina-la, ela nos envolve na sua dança. Não há escolha.

Dançar a sua obra ou a metáfora da infixação?:

Quase vinte anos de dança contemporânea deixaram um traço indelével na obra de Iole de Freitas. Mesmo se ela não fala da dança de uma maneira literal, a dança fica sempre presente. Para mim, isso não é ?o movimento? mas sim ?a dança?. Para Nietzsche, escrever era dançar. A dança é uma metáfora do pensamento, uma escritura para conquistar a sua liberdade. Iole de Freitas, como já vimos, não tem limites; ela quer uma liberdade absoluta. Pode-se também citar Alain Badiou quando fala da ?metáfora da infixação? ou da ?intensificação? de Paul Valéry. É exatamente isso que está em jogo na obra de Iole de Freitas. Uma embriaguez, uma intensidade da metamorfose que nos oferece o poder que nos liberta e permite a interpretação do mundo. Iole dança com as ideias, dança com as matérias e nos envolve com ela numa explosão de vida dionisíaca.

Os intercâmbios entre artistas, dançarinos e coreógrafos são constantes desde que a Dada almejou fazer da dança uma manifestação visível da vida. Mas se a dança não fornece nada em retorno, nem documentos escritos para guardar, nem quadros para colocar nas paredes ou expor, somente um único instante fugaz onde as pessoas se sentem viver? por sua vez, Iole de Freitas, só ela sabe como nos propor um milagre ao expor a sua dança. Ela pega o corpo dançante para inventar novas encarnações plásticas. A abstração do corpo está levada ao seu extremo. Ela acredita na vida, em todas as formas vivas, nas suas metáforas, na «síntese móvel» como o chamava Stéphane Mallarmé, a quintessência da sugestão.

Iole de Freitas soube traçar novas perspectivas, mesclar temas transversais, novas formas dinâmicas do real que levam à abstração. Claramente, isso lembra os artistas do Futurismo, especialmente Umberto Boccioni. Ele é o artista que soube ir mais longe em termos de incorporar tudo por unificar ?as transformações que o objeto sofre nos seus deslocamentos em relação ao ambiente móvel ou imóvel?. Iole entende bem os efeitos desta continuidade e simultaneidade e este tipo de abstração que integra a figura no espaço.

Frente a certas obras de Iole de Freitas não consigo deixar de relembrar outra mulher notável: Loïe Fuller (1862-1928) com a sua dança serpentina que a fazia desaparecer num véu de vários metros enquanto ela girava num jogo inteligente de luzes e espelhos. Ela inventou a primeira escultura cinética e de luz, uma grande artista de linhas e cores, precursora da arte feminina. Isso não tem nada a ver com a dança dos sete véus, aquele strip-tease divinizado da sedução feminina, pois o véu em Loïe Fuller é um suporte escultural. Ela desdobra geometricamente o tudo das transformações, das ondulações e das deformações que sofre no seu movimento, através do ar e do seu espaço ambiental.

Em Iole, cabe ao espectador imaginar as possíveis transformações. Suas obras vivem no movimento imperceptível da imaginação dos observadores. Inconscientemente continuamos a sua dança dentro das nossas cabeças e dos nossos deslocamentos enquanto andamos ao redor das suas esculturas ou as acompanhamos com os olhos. Reencontramos Boccioni: ?a concepção do objeto escultural se tornando o resultado plástico do objeto e do ambiente? produz o prolongamento de um corpo no raio de luz que o toca, a penetração de um vazio na plenitude que passa na sua frente. Consigo tudo isso por unir os blocos atmosféricos aos elementos mais concretos da realidade. Deve-se esquecer completamente da figura fechada na sua linha tradicional e ao contrário colocar a figura como o cerne dos sentidos plásticos no espaço? (1 a expo futurista de 1913).

Iole de Freitas extrai os ritmos e as formas da vida. Como Tommaso Marinetti no seu manifesto da dança futurista, ela sabe imitar com os gestos os movimentos das máquinas, seduzindo as diversas matérias que ela utiliza para pensar melhor ainda a fusão entre o ser humano e o seu meio- ambiente, até chegar à qualidade metálica da dança futurista!

Por fim, as obras de 1992 apresentadas nesta exposição evocam de certa forma os Parangolés de Hélio Oiticica. As experimentações da vanguarda artística dos anos 1950/70 foram marcadas no mundo inteiro pela irrupção do corporal nas tradições da arte visual. Os Parangolés, ao aliar a extravagancia aristocrática das tapeçarias do Renascimento às bricolagens dos moradores da favela de Mangueira no Rio de Janeiro, representam um convite formidável a encenar uma dança e refletir no cerne de um agregado de matérias dispares em busca de um espaço que deixa a pintura ser penetrada. A encenação de Iole de Freitas é cerebral. A interação é aquela da imaginação, aquela da metáfora da infixação.
Então, vamos dançar!

Marc Pottier
Rio de Janeiro, março 2016.

×
×