JOGANDO COM LIMITES
AgnaldoFarias
Desde que em 1910 o artista romeno Constantin Brancusi inventou de polir a superfície de sua “Musa adormecida”, um pequeno volume de 16x27,3x18,5 cm, pousado sobre uma mesa, ficou necessário rever a definição de escultura. Até aquele momento, toda escultura, fosse feita de madeira, pedra ou metal, era um volume opaco que interrompia a continuidade do espaço. O problema apresentado por Brancusi com esse procedimento que transforma a superfície de sua escultura num espelho é que parece não mais haver separação entre ela e o espaço em que ela está. Vê-la significa ver simultaneamente frações refletidas do ambiente. Vê-la bem de perto significa ver-se vendo. As conseqüências desse achado não são poucas bem como suas ressonâncias e sintonias no campo do pensamento e da produção do conhecimento, afinal está se falando de um objeto que não se separa do observador; que surge aos olhos dele no mesmo momento em que sua imagem lhe aparece refletida. Convenhamos que não é pouca coisa.
Transpondo essa discussão para agora, num corte transversal que sobrepassa o momento em que artistas como Dan Flavin, James Turrel e Robert Irwin, meditando sobre a possibilidade aberta por Brancusi, levaram a escultura do espelhamento que lhe provocava uma subtração de peso aparente à luz, chega-se aos trabalhos de Luiz Hermano, orientados por um vetor diametralmente oposto aos desses mestres. Antes de prosseguir, devo esclarecer que vou me deter sobre os trabalhos tridimensionais do artista, sem comentar, senão tangencialmente, sua prolífica produção de desenhos, gravuras e pinturas, e sempre com o propósito de iluminar aspectos de sua obra tridimensional que lhe são tributários. Muito embora, a grande qualidade daqueles seja igualmente digna de análise, penso que a maior contribuição de Luiz Hermano, aquela responsável por sua posição diferenciada no nosso panorama de arte, deve-se sobretudo à sua produção tridimensional, dividida entre relevos, esculturas e gravuras, além de algumas incursões por modalidades incompatíveis com as designações correntes, como é o caso das “Esculturas para vestir”, de 1994, entre outras realizações desse artista singularmente fértil.
Ao invés de se expandirem, em direção ao espaço circundante, um denominador comum à maioria das instalações e outras variantes da noção clássica de escultura, os trabalhos de Hermano privilegiam a membrana que separa seu interior do mundo. Sob a forma de volumes de superfícies porosas, intrincadas e espessas, relevos fixados na parede e até próteses que se aplicam ao corpo, em qualquer caso suas construções atraem o nosso olhar para perto, para a pele e daí para as entranhas da pele, levando-o a constatar que os corpos, a contar de seus limites, são, parafraseando Herberto Helder, “um texto que se multiplica por dentro, sem crescer, cruzado incessantemente por túneis, corredores e caminhos de pronúncia áspera”. (“Poesia toda”, Lisboa: Assírio Alvim, 1981, p. 381).
Grandes e pequenas, no mais das vezes constituídas de matérias ditas banais e ordinárias, como esponjas de cozinha, chapinhas de latão, capacitores eletrônicos e caminhõezinhos de plástico, minúcias irrelevantes, essas obras, que chegam a assumir a magnitude de uma sala, flertam com a vária matéria comum e com seus resíduos, defendendo-os como significativos e cheios de energia, como esses pequenos flocos de sujeira que se vão juntando com o passar dos dias, essas enigmáticas colônias de matéria sutil – parte delas, como se sabe, confeccionada pelas peles dos moradores, produzidas pela ação discretíssima dos afluentes dos ventos que, curiosos, insinuam-se pelo interior de nossas casas, vasculhando-as. Não se dá o mesmo com as sobras diárias deixadas por uma sociedade como a nossa?
O relevo das peles
Embora Luiz Hermano venha mais e mais praticando a instalação, especialmente depois de sua sala na Bienal Internacional de São Paulo, em 1991, seu foco na escultura e, sobretudo, no relevo, tem freqüência maior. No geral, dotados de tessituras tortuosas, várias delas produzidas pela articulação sistemática e rítmica de fios – cobre, alumínio, aço etc. –, a maioria desses volumes é oca e leve, enquanto suas peles, de resto responsáveis por sua rigidez variável, são cascas crespas e arejadas, que se abrem para o ar ao mesmo tempo em que a organização da matéria que as constitui evoca a energia desprendida pelas mãos do artista quando da sua produção. A energia empregada vai confluindo para essas estruturas de separação entre o dentro e o fora, para as membranas, na medida em que vão sendo construídas, adquirindo suas formas. Uma vez terminadas, essas formas, ao passo em que fazem circular a energia aprisionada, levam nossos olhos juntos no mesmo movimento que enunciam.
A dubiedade de referências é um aspecto dos mais fecundos desses relevos. São pinturas ou esculturas? A dimensão pictórica transparece nos contrastes entre cores primárias e seus subtons, presentes nos objetos industrializados, como também nas composições circulares e as reticuladas (Kathmandu, p. 31; Redes de cubos III e IV, pp 40 e 41; Bandeira e Bandeira II, p. 44, Onda, p, 45). Ao lado do tratamento cromático, desponta o problema das referências cruzadas, particularmente complexa na obra de Hermano. Por exemplo, a recorrência de formas geométricas, entre elas, as circulares, conta-nos de seu interesse por fundamentos de liturgias variadas. O uso de mandalas aconselha a lembrança de seu significado em sânscrito – círculo mágico ou círculo de energia – e seus atributos como fórmula que sintetiza a relação entre homem e cosmos e foco de meditação, o que corrobora a idéia de que se trata de uma forma que captura nosso olhar. Particularmente quando vem assim, combinada com o efeito produzido pelas cores, como se dá em “Onda”, e seu movimento concêntrico. Concomitante a essa referência extra-artística, vêm aquelas pertencentes ao campo da história da arte, no caso em questão sobressai a sintonia com as proposições feitas pela pintura hard-edge, de artistas como Kenneth Noland e Ellsworth Kelly, que afrontavam o formato quadrangular da pintura.
O âmbito escultórico dos relevos, por si só contemplado na ênfase de suas espessuras, responsáveis por suas projeções para fora da parede, evidencia-se ainda mais nos casos de torções acentuadas, além daquelas compostas por objetos especialmente volumosos, como acontece em “Brejo”, pp. 42 e 43, “Língua” e “Poesia-concreta”, ambas nas pp. 54 e 55, respectivamente, e, concernente ao segundo caso, “Bilros”, p. 59. Dois aspectos chamam a atenção nesse campo de problemas: 1o – sublinhando o que já foi dito, na maioria das vezes, esses relevos, como grande parte de seu trabalho, são confeccionados com objetos pertencentes à massa de coisas heteróclitas que povoam o nosso dia-a-dia, de miuçalhas úteis àquelas que são fonte de entretenimento; 2o – neles, é comum a presença de uma ordem elusiva, passível de ser confundida com caos, verificável particularmente nos trabalhos que submetem a geometria às leis da matéria utilizada para sua corporificação, e nos trabalhos feitos a partir de peças de jogos, cujas regras são visivelmente alteradas em favor da investigação de suas possibilidades construtivas.
Os relevos, esculturas e instalações de Luiz Hermano deflagram, em nós, dois grandes cursos do olhar: olhar como ler, identificando letras, números e objetos; olhar como ceder ao fascínio daquilo que é visto, enredado nos pormenores de matéria ou na lógica impermeável das construções. Um efeito que ele obtém pensando a pele de suas peças, a película mais ou menos espessa que separa o íntimo do mundo. No caso dos relevos, afixados que estão contra as paredes, a pele não é propriamente separação de nada, apenas a ênfase de si; uma demonstração de que, afinal, tudo está na superfície porque a superfície é tudo o que há. No caso dos volumes, ao mesmo tempo em que nos leva a refletir sobre o interior, o lado de lá das coisas, e que no geral o artista mantém visível não obstante inacessível, a pele segue sendo o aspecto fundamental, aquilo que, do ponto de vista estrutural, garante a unidade da forma, e, simultaneamente, prenhe de acontecimentos, um mundo em si mesmo. Qualquer que seja o caso, elas fixam nossos olhos em sua órbita, injetam-lhes gravidade; coloca-nos de frente com situações obscuras e misteriosas: a mesa onde o imaginário e a fantasia se alimentam.
Os começos
Essas construções de Hermano não são de agora, datam de sempre, desde que ele começou seu percurso artístico, o que se deu na passagem dos anos 60 para os 70, um pouco antes que ser artista se tornasse uma possibilidade entre os jovens que, como ele, nasceram entre meados dos 50 e meados da década seguinte; uma geração que sofreu os efeitos da ditadura militar, que cresceu num meio adverso ao debate cultural, no âmago de um hiato responsável pela fissura havida na linha de continuidade da nossa produção artística.
Longe de uma educação formal no campo que escolheu para atuar, até porque as escolas superiores de arte existentes, sobretudo aquelas que interessavam entre um conjunto exíguo e mumificado vazado na tradição acadêmica, eram poucas, bem poucas, e sem contar com o benefício de um meio artístico naquela altura esvaziado, lembremo-nos que durante os anos 70 a Bienal de São Paulo, a principal fonte de informação sobre o que se fazia em arte, sofreu um boicote nacional e internacional, conclui-se que Luiz Hermano tirou de dentro de si a maior parte da substância de sua poética, da sua infância na pequena Preaoca, das outras cidades do Ceará em que viveu, do curso de Filosofia em Fortaleza, abandonado por uma sucessão de viagens pelo Brasil e por países vizinhos, de tudo isso e, naturalmente, da história da arte propriamente dita.
Esse comentário merece ser mais estendido. Numa trilha aberta por artistas como o pernambucano Gilvan Samico e o paraense Bené Fonteles, ao lado de colegas geracionais, como o paraense Emanuel Nassar, os mineiros Marcos Coelho Benjamin e Fernando Luchesi, o pernambucano Marcelo Silveira e, mais recentemente, o baiano Marepe, Luiz Hermano encontra na tradição popular um veio fundamental de seu trabalho e, como eles, sem com isso incorrer na busca de uma arte de “raízes puramente brasileiras”, uma compulsão tão ideológica quanto ultrapassada e que vez ou outra, especialmente em tempos de globalização, figura nas agendas estéticas mais ingênuas. No caminho de Hermano, não contam as narrativas autobiográficas, um compromisso que ele foi firmando na medida em que suas peças foram progressivamente abandonando qualquer traço que sugerisse vanglória do seu ego e que ele garante pelo uso recorrente de objetos encontrados, num arco que vai de esponjas a miniaturas e, indo além, na adesão de procedimentos próximos ao pós-minimalismo, como notou Tadeu Chiarelli, em seu texto “O minimalismo, a arte brasileira, o pós-minimalismo e a produção de Luiz Hermano – mas não necessariamente nessa ordem” (Catálogo da exposição realizada em 1995, na Galeria Joel Edelstein, Rio de Janeiro). De fato, é para onde ele se desloca à custa de uma farta utilização de peças pertencentes a jogos e da constatação de que na maior parte das vezes a estrutura do trabalho depende antes de um sistema preestabelecido do que de uma sua atitude arbitrária, um gesto virtuoso, típico de um artista moderno. Ainda que a artesanalidade empregada de seus trabalhos seja um aspecto evidente, ela costuma ser discreta, limitada ao alinhavo de elementos produzidos em escala industrial e, em conseqüência, anônimos. Assim, longe de significar um retrocesso, um movimento nostálgico por parte de quem, nascido no interior do Brasil, hoje vive numa metrópole como São Paulo, acusações que lhe são feitas por leituras desavisadas, Hermano assume o trabalho sem rosto, a ordem econômica que subsume as práticas tradicionais, mas que, ao mesmo tempo, incorpora em chave própria as necessidades de fantasia das pessoas.
Hermano sempre perseverou rumo ao interior das coisas, examinando com cuidado aquilo que elas deixam visível, demonstrando que dentro delas existe um universo próprio praticamente inacessível, só parcialmente inescrutável, permanentemente misterioso. Investigando e propondo máquinas e próteses, atmosferas e cenas coalhadas de gentes e bichos, por meio de pinturas, desenhos, gravuras, esculturas e instalações, a atenção do artista recaiu sempre sobre o dentro, seja apresentando versões mais ou menos fantasiosas dos motores e engrenagens que regem a dinâmica dos entes, vivos ou construídos pela mão do homem, seja porque a maneira de representá-los e construí-los vale-se de estruturas vazadas, planos confeccionados por tessituras arejadas, armaduras, linhas emaranhadas, como a pele que, muito de perto, revela-se uma cultura de fios fincados nos poros, os dutos microscópicos pelos quais o nosso corpo respira e se relaciona com o lado de fora.
Espaço e encantamento
Imagens detalhadas de esferóides macios, urdidos por linhas de espessuras variáveis em cujos interiores adivinham-se brinquedos de plástico coloridos, bonecos, soldados, rinocerontes, bicicletas, aranhas, escorpiões, exemplares dessa infinidade de miudezas que os camelôs e as lojas de R$ 1,99 oferecem às crianças em geral, em particular as desfavorecidas, facultando também a elas o acesso ao mundo dos sonhos, um plano em que, graças ao trabalho da imaginação, todos os objetos, incluindo os confeccionadas por um material tão comum quanto o plástico, têm um poder insuspeitado. Desde cedo, o artista soube disso, desde quando criança, Hermano inventava brinquedos feitos com ossos de animais; entretinha-se, a si e os outros, com um material que em princípio dir-se-ia incompatível com joguetes, numa prova de que o desejo de fazer rolar a imaginação é o que move o mundo, ao mesmo tempo em que é justamente o brincar que faz com que momentaneamente esqueçamos a sua existência.
Essas imagens à grande instalação intitulada “Encantados”, um projeto que, como veremos, surge da depuração de seus desenhos aquarelados do começo dos anos 80, que se vale de um raciocínio que perpassa grande parte de sua trajetória e que foi materializado em 2004 na Galeria Nara Roesler, em São Paulo. Nessa grande obra, provavelmente a mais arriscada entre todas as que Hermano realizou, mais ainda que a excepcional “Resíduos e vestígios”, instalação apresentada na Bienal Internacional de São Paulo de 1991, embora admita que seja mais fácil gostar desta última pela clareza das proposições formais que a compunham, em “Encantados” o artista radicaliza sua poética fundada em visões fantasiosas de objetos e seres e de revelação dos mistérios dos organismos. E essa guinada percebe-se no modo como ele amplia sua estratégia de envolver o olhar do espectador, convidando-o a se aproximar de suas arquiteturas para espiar dentro delas, fazendo-o entrar no interior de uma atmosfera de sonhos. Ingressava-se em “Encantados” como quem mergulhava num espaço cósmico ocupado por essas nebulosas trazidas pelos telescópios, as explosões multicoloridas, longínquas e silenciosas, inchadas de uma miríade de pequenos focos luminosos.
O grande espaço retangular da sala expositiva (5x14x6 m) da galeria esfumava-se num céu pontuado por nuvens e balões, alguns deles presos no teto, outros flutuando no chão, dotadas de formatos irregulares, alguns a sugerir movimentos ascensionais, outros, mais gordos, parecendo momentaneamente imobilizados. Essas peças dividiam o espaço com construções igualmente estranhas, como o grupo de volumes semi-esféricos disposto logo à esquerda da entrada. Nesse grupo, cada volume era formado pela união face a face de duas bacias plásticas, uma tampando a outra e conectadas entre si por fios desalinhados, responsáveis pelas luzes provenientes das lâmpadas acondicionadas no interior de cada unidade e que os transformava em blocos compactos de luz. Havia ainda algumas construções igualmente enigmáticas, como os pequenos cubos verdes feitos de malhas metálicas, também eles grávidos de luz. Apoiada simultaneamente na parede e no piso, a partir da segunda metade da sala e contornando toda a parede dos fundos, desenovelava-se uma malha metálica de trama fina, com as deformações próprias da sua maciez e da acomodação resultante de seu peso. A iluminação produzida por lâmpadas irregularmente dispostas irradiava-se pelo ambiente em razão dos minúsculos pontos do tecido de aço, num efeito próximo a girândolas flagradas por uma câmera fotográfica operando em alta velocidade ou um parque de diversões “lilliputiano” com todos seus aparelhos luzindo numa noite especialmente escura. Mas o elemento definitivamente intrigante, os “encantados” do título, eram os pequenos seres que pendiam de arames fixados nas paredes, cada um deles praticamente recobertos por barbantes, enrolados como insetos capturados por aranhas, embora o nome sugira mais a condição de crisálidas, seres em estado de gestação avançada, prestes a romper a cascas de seus casulos. Desenrolá-los significaria fazê-los nascer? Despertá-los?
A gradação variável de luz dentro e fora das “nuvens” suspensas e pousadas no chão era cuidadosamente calibrada para não ferir a penumbra geral. Agarrados nas paredes ou enraizados no piso, os volumes chamavam a atenção também pelos pequenos objetos coloridos enredados em seus interiores, semelhantes aos “encantados” grudados nas paredes. Mais uma vez, as tais reproduções miniaturizadas de pessoas e bichos, motociclistas, bebês, soldados, girafas, rinocerontes, bicicletas, aranhas, escorpiões, sapos, morcegos, peixes, jacarés, estrelas; uma constelação de brinquedos baratos, reproduções deformadas e berrantemente artificiais, como certos pirulitos laranja, azuis e roxos com que as crianças tingem suas línguas, das múltiplas modalidades de vida acima e abaixo do planeta, andando, cavando, saltando e voando. Cada nuvem era formada por bulbos, vários deles podiam-se identificar como essas esponjas de plástico policromado utilizadas nas pias domésticas, no interior dos quais pulsava uma dessas pequeninas miniaturas coloridas, tornadas atraentes pela fonte de luz que se derramava de dentro para fora, ressaltando suas silhuetas e a transparência de seus corpos, elevando-as a preciosidades, sedutoras conquanto inatingíveis.
“Encantados” pertence à mesma família de construções como o castelo nas nuvens onde vivia o gigante de “João e o pé de feijão”, ou os mares em que “Sinbad, o marujo”, navegava com seu barco intrépido, todos esses nada mais são do que fantasias. Nada mais são? Convém lembrar que isso, que a capacidade de fantasiar, ou imaginar, os termos podem ser tratados como próximos ou mesmo equivalentes, é tudo ou, retomando o comentário de Francis Bacon a propósito da produção artística, é a faculdade que está na sua base. E é exatamente esse o objetivo maior das obras de Luiz Hermano. E desde o seu início, mas, como já se alertou, sem a maturidade de suas realizações seguintes.
O mistério das máquinas
Seu percurso como artista se inaugura no final dos anos 70, quando, em seus desenhos multicoloridos feitos em aquarela, proliferam imagens de gente e máquinas extraordinárias: barcos, balões, aviões e bicicletas vão desfilando repletos de funâmbulos, acrobatas, equilibristas; magotes de criaturas aladas, entre anjos e demônios, seres montados em peixes, cavalos, serpentes e elefantes; seres com a xifopagia típica de faunos, sátiros e centauros, extraídos de mitologias pagãs e dispostos lado a lado com iconografias provenientes de outras religiões, da bíblica torre de Babel à cosmologia hindu que descreve o mundo apoiado sobre o dorso de elefantes, por sua vez apoiados no casco de uma imensa tartaruga, por sua vez... A primeira consideração a ser feita sobre esse ecumenismo insólito, que combinava elementos de dicção surrealista com outros de sabor psicodélico, ambos próximos e muito em voga naquela altura, era que ele trazia consigo, à maneira de uma elaboração mais refinada, uma coleção das imagens que povoaram sua infância de criança do interior, colhidas na literatura de cordel, em almanaques de curiosidades, nos manuais de montagem de brinquedos, em mapas-múndi e nas estampas reluzentes dos missais e dos santinhos por meios dos quais as crianças são atraídas para a religião.
Vale notar que esses desenhos foram antecipados por outros realizados à base de café. Mais do que curioso, trata-se de um detalhe que esclarece uma importante faceta do artista, haja vista que o café chegou-lhe simultaneamente como desejo de explorar sua potencialidade e como estratagema prático por parte de quem, desprovido de recursos, lançava mão de uma tinta tão à mão e tão barata que só mesmo uma criatividade açulada pela carência de meios poderia supor. Pois é justamente essa obstinação em seguir adiante inventando mundos de tudo que encontra, a começar pelos improváveis brinquedos feitos de ossos, que o levou a considerar, como possibilidade para suas lides lúdicas, todos os materiais, por comuns e baratos e, em razão disso, habitualmente deixados de lado, do mesmo modo com que são deixados de fora do território da arte, de natureza tão refinada quanto afetada. Pois não há material pobre ou desinteressante, é o que concluímos ao repassar sua obra. À sua maneira, Hermano retoma a lição de Pedro Nava dissertando sobre os açúcares, explicando que é um erro rudimentar querer classificá-los em superiores e inferiores, um “critério de quem os vende, e não de quem os compra”.
O processo se adensa com as séries de gravuras em metal “Projeto para dias de chuva”, apresentadas em 1987, nas quais, escapando de suas pinturas anteriores, cuja temperatura cromática e frenesi gestual alinhavam-nas com as pinturas do período de seus jovens colegas da Geração 80, de olho nos macetes da Transvanguarda italiana e do Neo-Expressionismo alemão, o artista recua para um trabalho tão sóbrio quanto mentado. O reticulado presente em grande parte delas trai sua convivência com o desenho técnico, mecânico, um recurso que ele emprega para ancorar na esfera de projeto os desenhos de máquinas, nomeadamente navios, submarinos, dirigíveis e balões, os motivos recorrentes do artista, rodeados por motores, peças e engrenagens de extração mecânica, de natureza e uso obscuros em que pese a familiaridade sugerida. Caderno de notas de um cientista bem-humorado, diário de projetos utópicos? Suas máquinas insólitas e engraçadas, engenhocas improváveis, apesar de semelhantes a barcos bojudos, naves espaciais e submarinos, embora possuíssem as janelas redondas e hélices convencionais, sua aparência destrambelhada dispunha uma funcionalidade precária, denunciava sua vocação antes a serviço do sonho do que da necessidade.
Os objetos vêm apresentados em associação com pessoas, gente que os manipula, carregando-os de um lado para outro, utilizando-o, ou ainda interagindo de um modo estranho, como se estivesse sob risco de vida. Elaboradas sem o auxílio de instrumentos, essas engenhocas e traquitanas pertencem ao mesmo tipo de futuro prenunciado por artistas tão diversos quanto Moebius e Panamarenko, que recusam a idéia de um amanhã asséptico, presumidos pelos livros de Isaac Asimov ou filmes como o “2001” de Stanley Kubrick. Talvez por viver no Brasil, onde convive a desigualdade de toda ordem, aí incluída a desigualdade tecnológica, os desenhos de Hermano advertem tanto para a rusticidade do que está para vir quanto sobre o componente onírico pressuposto nesse exercício.
Se “Encantados” remonta à atmosfera onírica dos primeiros trabalhos do artista, investindo na criação de um ambiente devotado à fantasia, obtido por meio de volumes ocos e leves, ninhos de miniaturas coloridas cujo mistério é sublinhado pelo emprego arrevesado da luz que, ao invés de esclarecer, acentua suas silhuetas, “Máquinas voadoras”, instalação de dimensões variáveis, executada em 2002, releva dos primeiros trabalhos, misturado com a mesma fantasia, o fascínio pelas máquinas, com destaque às de transporte. Nesse sentido, sua relação com “Projeto para dias de chuva” é total, embora a novidade resida no fato de que todas as peças que compõem cada um dos trabalhos e que juntos perfazem uma instalação resultem da exploração, muito além do prescrito pelo manual de instruções, das possibilidades de combinação das peças que compõem certos brinquedos de encaixe destinados a introduzir as crianças no âmbito das estruturas, no espectro amplo compreendido pelos territórios de campos científicos como a engenharia, a biologia recuada até a paleontologia dos dinossauros, entre outros brinquedos igualmente sedutores. Em “Máquinas de voar”, o artista procede ao embaralhamento dos planos de plástico provenientes desses jogos, recortados em formatos predominantemente orgânicos, embora às vértebras, asas estriadas e ossaturas longilíneas somem-se rodas raiadas, bancos e mesas, numa barafunda virtualmente incompreensível. Suspensas em fios de nylon, “cada máquina”, transportando e sendo pilotada por silhuetas humanas, é o resultado tremelicante da combinação estapafúrdia dos módulos diversos que compõem os vários brinquedos. Algumas chegam a nos sugerir carroças, carruagens ou aviões de um tempo anterior ao que foi inventado, enquanto outras nos fazem pensar em certas elaborações zoomórficas, parentes distantes dos célebres “Passarola” do Frei Bartolomeu de Gusmão, pioneiro na aviação do “mais leve do que o ar”, e do Nautilus, o magnífico antecessor do submarino idealizado por Júlio Verne, em seu “20 mil léguas submarinas”, na versão consagrada por Walt Disney, e próximos das máquinas de combate que Lucas nos trouxe já nos primeiros episódios de seu “Guerra nas estrelas”.
O artista vale-se também das próprias placas retangulares, as matrizes em que as figuras vêm montadas. Após separá-las, o artista utiliza-as em arranjos ortogonais vazados pelos negativos das figuras retiradas. Essas placas matrizes prestam-se a construções arejadas, pequenas casas ocas, de paredes que se abrem em frestas transparentes mais ou menos familiares; palíndromos arquitetônicos que se podem ler tanto pelo cheio quanto pelo vazio.
Se “Máquinas voadoras” corresponde à versão tridimensional de excertos de desenhos e gravuras da década de 80, em particular o álbum de gravuras em metal “Universo”, de 1981, a sala/instalação da Bienal de São Paulo de 1991 é o primeiro e excepcional resultado dessa transposição. Dramaticamente iluminada, os pontos de luz da sala foram estudados para melhor destacar cada unidade do amplo conjunto de esculturas e relevos de grande formato, algumas realizadas em vergalhões de ferro de diferentes espessuras, a maioria confeccionada com fitas de madeira. Mais despojada e simples do ponto de vista formal, a série de 1991, ao contrário da mais recente, pautada em volumes produzidos pela intersecção de planos, compõe-se de um grupo de volumes ocos dispostos sobre o chão, presos nas paredes e pendurados no forro. Mais abstratos do que os desenhos que lhe impulsionou, variam entre tomar máquinas como referências – “Nave mãe”, “Balão” e mesmo “Catedral” –, o que fazem indiretamente, e formas orgânicas como “Caracol”, “Casulo”, “Masculino” e “Feminino”, entre outras. Os volumes são enunciados pelo negativo, ou seja, por seus limites, pelas delicadas fitas de madeira trançadas, entrelaçadas e torcidas em tramados regulares, chamando a atenção sobre si, sobre seus torneados graciosos e ágeis, seu marrom polido que divide em faixas abraçando o vazio. Alguns deles combinam duas qualidades de madeira, uma clara e outra mais escura, e a variação da superfície ocorre pela alternância dessas cores ou porque alguns dos retângulos formados pelos cruzamentos das fitas são fechados por placas maiores, de coloração diversa, embora da mesma espessura. Como se vê, já nesse trabalho mais recuado no tempo, fica claro o interesse do artista em destacar o volume pelo elemento que separa o seu interior do seu entorno, no caso um exoesqueleto, posto que todas as peças são reduzidas ao material que define e garante suas formas. Esse procedimento que consiste em desbastar o volume à sua estrutura fica ainda forte em obras como “Catedral”, cuja imponência garantida pelas suas dimensões (170x200x100 cm), contrasta com a leveza de seu desenho, resolvido em vergalhões e arames grossos de ferro, curvados e soldados. Com suas duas hélices embutidas, uma para cada perna, “Catedral” talvez seja aquela que mais diretamente dialoga com a família dos desenhos focados em máquinas e seres fantásticos.
O exame dessa instalação leva-nos a concluir que Luiz Hermano sempre foi um artista inimigo da literalidade. Sequer seus símbolos são evidentes, universalmente compartilhados, o que não os impede de exalar certa familiaridade. Como ensinou Mallarmé: “Dar nome a um objeto é aniquilar três quartos da fruição do poema, que deriva da satisfação de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, evocá-lo – isto é o que encanta a imaginação.” (citado por Edmund Wilson, em “O castelo de Axel”). Daí a explicação do seu interesse obsessivo por jogos. Hermano joga com a gravidade de um adulto que, diversamente de uma criança que submerge enlevada na lógica do jogo, pensa suas regras, seus objetivos, para então alterá-lo. O que nos leva, nós espectadores de seu trabalho, a imaginarmos quais as regras e leis responsáveis por ele.
Das regras e dos jogos
Segundo Hermano a arte, como o jogo, é uma prática ociosa que se escora e se satisfaz na pura alegria de construir e que se amplia no fabrico de nexos astuciosos entre partes para estabelecer construções não triviais, pré-condição para a construção de novos significados, produzidos pela nossa imaginação acesa. Daí a perturbação premeditada das regras por sabê-las arbitrárias. Seus trabalhos decorrem da compreensão da engenharia como uma atividade intrinsecamente lúdica e despojada da obrigação de funcionalidade, o que constrangeria seu raio de ação, e que se faz desconstruindo e perturbando seus passos metódicos, tratando-a como matriz de estruturas flexíveis e imprevistas, à beira do desconjuntamento. O desafio do artista é a fundação de um mundo cujas vértebras são constantemente trocadas, baseado no estabelecimento contínuo e mutável de relações entre coisas diferentes umas das outras, um produto de quem enxerga o mundo como um caleidoscópio de ritmos e imagens e que nos ensina que toda variação desenvolve nossa capacidade de olhar e brincar.
A série “Redes de cubos”, realizada em 1999, precedida por obras como “Cúbico II”, 1995, “Cubo desmontável”, 1997, “Quadrado em cruz”, 1998, trata de sólidos e estruturas geométricas, sistemas que o senso comum associa com a certeza, precisão e irrefutabilidade. Suspensos nas paredes, abandonados à própria gravidade, entrechocam-se e desorganizam-se como que zombando das pretensões dos cálculos, demonstrando o abismo entre a idéia e sua materialização. Não há fixidez nessas obras ainda que todas elas sejam feitas de pequenas unidade de material rígido, placas e linhas metálicas – alumínio e cobre; é como se acompanhássemos a deformação do cubo que lhes serve de módulo. A impermanência e a mutabilidade crescem à medida que se as examinam, e a forma escandida que trazemos na mente não se ajusta com o que vemos, embaralhando-se com as sombras produzidas pela incidência da luz, confundida pelo achatamento dos elementos que as constituem, efeito da visão em profundidade. As esculturas e relevos mais descarnados e leves trazem a lembrança da obra diáfana de Gego, a venezuelana que impôs um sentido cósmico à escultura. Mas o fato é que são mais comedidos, compactos, atentos aos volumes enunciados pelas linhas, mais lacônicos e eficazes ao seu propósito de demonstrar a obliteração do jogo proposto pela geometria (o que são seus axiomas e postulados senão isso?).
“Cidade αβ”, instalação de dimensões variadas, construída a partir de placas de plástico rosa-escuro vazadas com as letras do alfabeto e que tanto pode ser montada numa parede quanto ser apresentada sobre o chão, segreda-nos um jogo composto por várias camadas. Um conjunto de casas desiguais – um sobrado, um edificio alto, um pagode, uma construção com a mesma solução em arco adotada por Niemeyer em Pampulha, outras variações singelas sobre o tema, mais ou menos alusivas – organizam-se numa ordem ortogonal, como se fora uma parcela de um tecido urbano. Tendo letras por paredes e letras nas paredes e teto – a letra: o grão do discurso verbal –, ver essas casas simplificadas à sua representação infantil, implica em lê-las, o que é o mesmo que realçar sua oposição à natureza e seu papel crucial no estabelecimento de ritos, na demarcação de espaços, na possibilidade de isolamento do mundo, de recolhimento do ser. Note-se que as letras não estão organizadas em palavras, não há evidência do uso da sintaxe que rege a língua portuguesa. O que não impede que, como acontece com números, a presença de uma letra invoque a letra seguinte. Trata-se, pois, de um mecanismo deflagrador de movimento, no caso o movimento da compreensão. De outro lado há, aí sim, a sintaxe das casas, das paredes e tetos e seu arranjo no plano da parede ou do piso, a maneira do que acontece com uma cidade. A comunicação entre todas elas, o que garante a lembrança de uma pequena cidade, é fornecida por uma retícula de tubos delgados de cobre, retilíneos, semelhantes àqueles que trazem o gás da rua para os bicos dos fogões. Novamente, aqui, a idéia do fluxo de energia e do movimento latente e submerso nas coisas. Deve-se também considerar que o vocábulo lar é uma derivação de lareira, a morada do fogo, o elemento que assegura o conforto quando no rigor do inverno, vital para a unidade dos assentamentos humanos.
Na versão realizada na parede, o artista escreve com lápis entre as casas, sobre a superfície branca e rugosa como um papel texturado de alta gramatura, acrescendo à composição a possibilidade de ele ser também um mapa. O círculo, contudo, não se fecha, uma vez que junto com topônimos habituais, como “Hotel ABC”, “Aeroporto” ou “Laboratório”, coisas constantes em mapas urbanos, mas que também são passíveis a passagens e a transformações, à circulação de energia que o artista tanto preza, chega-nos alusões vagas, como “Sábado” e “À tardinha”, associadas a – quem sabe? – estados de espírito ou eventuais acontecimentos ocorridos num sábado ou numa tardinha perdida no tempo; deparamo-nos também com “Faxinal das artes”, o nome de uma única edição de um inesquecível programa de residência artística realizada em Faxinal, um pequeno vilarejo no interior do Paraná, ocorrida em 2002, e que por duas semanas reuniu 100 artistas de todos os quadrantes do país. O aglomerado conciso de casas revela-se lugar de encontro, intercâmbio, mas também de reclusão. Lugar de passagem, de conexões (outra palavra escrita), de duplo sentido (mais outra), no que isso pode significar um cotidiano estilhaçado pelo extraordinário.
Colecionador compulsivo, Luis Hermano recolhe os formas, brinquedos e objetos para utilizá-los como matéria prima de suas construções, cose-os uns aos outros, liga-os por mangueiras e tubos de metal e de borracha, mergulha-os em linhas emaranhadas de alumínio, perfaz circuitos truncados cuja finalidade e ativação ignoramos, mas dos quais não conseguimos escapar. Debruçamo-nos sobre essas obras com a mesma atenção que preenchíamos as horas de uma tarde chuvosa jogando forca, testando as palavras possíveis de serem enunciadas a partir de um reduzido número de letras. Cada letra imantava outra, frágeis moléculas silábicas iam se formando e se desfazendo em favor do encadeamento de outras mais afinadas com nossos propósitos. O fato incontestável é que adoramos jogar, mais do que isso, necessitamos disso. E o artista, ciente dessa necessidade, apóia-se em estruturas definidas por regras para reinventar outras regras, subjacentes de suas obras que por isso mesmo são enigmáticas, embora estejam tão próximas e tão materiais, separadas por uma simples membrana, mas uma membrana espessa, ela própria um fragmento do universo.