O ARTISTA COMO ARTESÃO, O ARTISTA COMO COLETOR
Tadeu Chiarelli
Esta exposição do artista plástico Luiz Hermano, especialmente concebida para a Pinacoteca Benedicto Calixto, traz para o público de Santos uma rara oportunidade: perceber o processo de migração do artista (definitivo ou circunstancial, ainda não se sabe), que parece estar deixando uma atitude determinada perante o fazer artístico para se aproximar de outra.
Luiz Hermano, até muito recentemente distinguia-se pela ênfase que dava ao aspecto operacional da arte. Em suas gravuras de início de carreira e em muitos de seus objetos dos anos 90 (ambos com exemplos referenciais nesta mostra), a forma final parecia o resultado apenas de um contínuo e obsessivo fazer manual, aparentemente sem nenhuma etapa de projeto anterior.
Priorizando o aspecto artesanal do fazer artístico, ou melhor, deixando que desse fazer surgisse a forma final, o artista deliberadamente tendia a aproximar o resultado de seus objetos e esculturas ao universo dos objetos de uso cotidiano, produzidos pelas camadas populares do interior do Brasil, sobretudo da região nordeste do país, de onde o artista é originário.
Seus trabalhos invariavelmente remetiam a cestaria nordestina, aos têxteis daquela região e a outras tipologias, embora atuassem como objetos que haviam perdido sua utilidade, revelando-se enquanto formas meio híbridas, como se estivessem com um pé no artesanato e outro na "grande" arte.
E era essa ambigüidade, conseguida pelo caráter tão explícito do trabalho manual do artista, que concedia todo o encanto meio incômodo daquela sua produção.
Porém, em seus trabalhos mais recentes, Luiz Hermano dá claros sinais de estar deixando de lado o seu comportamento enfático de artista/artesão, para assumir uma outra atitude: aquela do artista coletor.
Não que em sua produção atual o dado artesanal tenha sido posto completamente de lado, longe disso. Na verdade o que acontece é que agora sua habilidade manual é empregada apenas para exercer a conexão entre objetos pré-existentes no mundo, objetos que o artista coleta para agregar ao seu trabalho.
De alguma maneira, em Luiz Hermano ocorre aquilo que aconteceu e/ou vem acontecendo na história da arte ocidental, no último século: a perda do interesse - em muitos artistas - de privilegiar os aspectos artesanais do trabalho de arte, e o progressivo interesse em agir como um coletor/manipulador dos objetos do mundo. (Sem dúvida o primeiro sinal mais decisivo neste sentido foi a colagem cubista, estratégia em seguida apropriada e desenvolvida de maneira radical pelos dadaístas. Do dada até a atualidade, cada vez mais artistas constituem suas respectivas poéticas a partir de apropriações e manipulações das coisas do mundo. Preferem esse posicionamento àquele de manter um jogo de equilíbrio entre projeto intelectual de uma forma e execução artesanal da mesma).
Quanto ao trabalho atual de Luiz Hermano, é importante chamar a atenção para um fato bastante significativo: ao diminuir a presença do fazer artesanal, sua produção, ao mesmo tempo em que busca ganhar o ambiente, por meio de soluções espaciais não escultóricas, também resgata um imaginário que, presente em suas gravuras iniciais, jazia esquecido na mente do artista.
Hoje a produção de Luiz Hermano dá indícios claros de estar tentando ampliar sua concepção inicial de trabalho tridimensional rumo a uma apropriação mais intensa e completa dos ambientes onde expõe.
Mesmo que se leve em conta questões mais práticas que também podem ter auxiliado nesta modificação (1), parece não restar dúvida que essas instalações que Hermano passou a produzir mais recentemente surgem como respostas do artista frente a essa sua nova postura como coletor.
A presença de um conceito espacial mais alargado está presente no trabalho atual de Hermano, mesmo quando ele produz seus objetos tridimensionais tendendo ao escultórico. Neles, muito embora se perceba uma auto-referência formal que os torna independente de qualquer contingência, nota-se uma tentativa do artista articular cada peça à sua semelhante, e todas elas com o espaço onde atuam.
Um exemplo claro desta situação - e presente na mostra -, é a sala onde Hermano apresenta seus objetos escultóricos, produzidos a partir de pequenas placas de madeira com letras inscritas (brinquedos para alfabetização) e livros. Sem dúvida aquelas peças possuem uma autonomia inquestionável. No entanto, quando articuladas entre si e conectadas pelos livros ali também presentes, ganham novas e inusitadas possibilidades de significação.
Por outro lado, ao se expandir para o espaço real - sem o confinamento da forma escultórica e/ou objetual -, o artista parece assumir uma compreensão da arte como jogo, da arte como ação lúdica.
É claro que em sua produção anterior este dado já estava presente. Uma vez que o trabalho artesanal é estruturado por regras, e, como foi comentado, sendo a anterior produção do artista pautada fundamentalmente pela exploração/reestruturação dessa tradição, sempre esteve presente no trabalho de Hermano uma compreensão lúdica do trabalho de arte.
No entanto, ao se apropriar de objetos já prontos, ao assumir essa sua nova postura de coletor e manipulador da realidade, as estruturas do jogo parecem se evidenciar no trabalho do artista quer pela criação de regras para como associar objetos entre si, quer pela desestruturação dessas mesmas regras em prol da desorientação criativa do observador, obrigado a todo o momento ficar se perguntando como Hermano chegou àquelas soluções.
Em sua instalação "Máquinas Voadoras" - uma verdadeira câmara das maravilhas, ou o quarto de uma criança resolvida a burlar todas as regras dos jogos -, o espectador é levado a adentrar num mundo onde as regras dos brinquedos, as regras impostas pela manipulação daqueles objetos determinados, são totalmente submetidas à nova ordenação dada pelo artista, obrigando a todos a uma outra percepção do espaço, dos objetos ali colocados, totalmente alterados pela reestruturação exercida por Hermano.
E é nesse novo contexto que reaparece o seu imaginário original visível em suas gravuras de início de carreira: casas estranhas, palácios insuspeitos, naves improváveis, seres híbridos e formalmente surpreendentes.
Se nas gravuras dos anos 80 todo esse imaginário era criado a partir da ação do instrumento sobre a chapa de metal, agora ele é recriado pela articulação e reestruturação de objetos já existentes.
Tão importante quanto conhecer a obra de artistas já consagrados, cujas obras já foram devidamente estudadas (ou estão em processo de estudo), é conhecer a produção dos artistas contemporâneos. Visitando suas exposições temos a oportunidade de entrar em contato mais direto com suas transformações internas, sem a intermediação muitas vezes inibidora da legitimação institucional dos artistas já consagrados.
Nessas visitas a exposições de arte contemporânea muitas vezes ainda temos a chance de flagrar o processo de transformação de uma trajetória, os desvios, os avanços, os arrependimentos.
Nas mostras de obras de artistas já devidamente institucionalizados, todas as arestas tendem a ser previamente podadas, todas as fases tendem a ser apresentadas sem que seja perceptível os momentos de indecisão, os avanços e os recuos igualmente válidos para a constituição da poética de todo artista.
É neste sentido que para o público da Pinacoteca Benedicto Calixto sem dúvida é uma rara oportunidade poder flagrar em pleno processo de transformação a obra de Luiz Hermano.
Um dos artistas brasileiros mais interessantes de sua geração, Hermano aqui se apresenta chamando a atenção para as profundas transformações pelas quais passa sua poética, introduzindo nela novos elementos, ampliando suas potencialidades.
Vivenciar esse momento, tornar-se cúmplice desse estágio de constituição e alargamento de uma trajetória artística, ainda com mínima interferência de fatores de legitimação, tende a ser um privilégio efetivo.