Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Maria Lynch

A Carne da Cor

Marisa Flórido

O desenho é o sexo masculino da arte; a cor é o sexo feminino. A cor cumpre na arte o papel do feminino, do sentimento; submete-se ao desenho como o sentimento deve estar submetido à razão. Ela acrescenta a ele o charme, a expressão e a graça.
Charles Blanc
Grammaire des arts du dessin (1867)
A cor adiciona ornamentos à pintura: mas ela é apenas a aia [dame d?atour], já que ela apenas torna mais amáveis as verdadeiras perfeições da arte.
Ingres
Como perceber as nuances e as contingências, os perigos e as delícias da cor? Em uma cultura que duvidou do sensível, a cor ocuparia um estatuto suspeito, secundário, servil. Um ?acessório?, como disse Kant, a perturbar o juízo do gosto. E, nas muitas disputas e querelas que, pelos séculos,
discutiram na pintura a primazia do desenho ou da cor (entre Rafael e Ticiano, Poussin e Rubens, Ingres e Delacroix), não faltariam argumentos a condená-la ou a redimi-la.
No imaginário que a condenou, a cor encontraria sua analogia com o feminino, com sua alteridade e com o pecado original que arrastou a humanidade à sua queda. Sua ameaça, associada ao forte apelo aos sentidos, a sua materialidade e sedução, a tornaria moralmente culpada entre seus detratores: a cor confunde enquanto o desenho se dirige à razão, diriam. Se o desenho fala, a cor não se esgota na
palavra, tanto excede a linguagem como expõe o silêncio que corta a carne do visível. A cor se endereça diretamente a um olho tateante, a um olho seduzido que quer tocá-la.
Por isso a rebelião da cor seria, para seus defensores, a rebelião do fragmento, da alteridade, do insubmisso. Celebração da carne, o colorido ? lugar privilegiado do prazer e da emoção em que o desejo se manifesta e ameaça ? é também o sopro vital que, no quadro, animaria os corpos
representados, os corpos em sua ausência, os corpos que faltam. É a cor ainda que nos arrastaria ao encontro com o inumano, com o prazer extremo experimentado na vertigem e na queda, com aquela ?alegria de descer? que falava Baudelaire. Uma alegria que Matisse transformaria em superfície e pele de cor nos conduzindo pelo fluxo sereno das sensações.
Maria Lynch pinta a carne da cor: corpos amarelos, verdes, azuis, vermelhos... Por vezes, vemos o esboço de um corpo inacabado, um desenho que não se completou ou foi deixado na tela como vestígio de uma promessa ou de um abandono. Rastros de um desígnio ou de uma falta? Por outras, em pinceladas mais densas, em faturas mais impregnadas, o pigmento ganha relevos, a cor projeta-se para fora do quadro, daquele retângulo que a domestica e a submete. O olho é tátil e deseja acariciar o mundo que o abraça.
Por isso esses corpos de cor migrariam das telas. Às vezes, se precipitam de um canto ou outro, tímidos, como pequenos detalhes que dela transbordam. Em outras, saem inanimados, feitos de pano, algodão e espuma - corpos de cor habitando o mundo em repouso e silêncio. Ou então cobririam os corpos que se pensam humanos, como segundas e terceiras peles, a confundir limites, a solicitar movimentos e toques. Corpos híbridos, performáticos, que realizam um balé de seres encarnados.

×
×