Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Maria Lynch

Ambiguidades

Felipe Scovino

A instalação de Maria Lynch não quer negar sua dubiedade. Concentra-se em uma zona que fica entre o erótico e o lúdico, entre o gozo e a culpa. O que este lugar representa? Para quem ele se apresenta?
É no quarto, lugar do íntimo e do privado, que (em idades e, portanto, interesses distintos) se tem a realização das brincadeiras infantis ou do desejo carnal. Construir o quarto a partir de fragmentos de corpos, memórias que são novamente ativadas e reapropriadas naquele instante (o que foi lugar e objeto de jogo, agora, ganha nova conotação), e, mais do que isso, essa representação ser direcionada para a aparição simbólica de falos, transmite para essa obra de Lynch um gesto perverso. A dualidade entre erotismo e o dado lúdico é bem expressa na relação entre cor e forma. A artista, não por acaso, escolhe cores vibrantes e cenicamente compõe um quarto de criança, um ambiente ?alegre?, que mentes mais ingênuas julgariam como propício para a brincadeira. O fato é que a forma dos objetos a serem manipulados nega a aparência meiga e delicada que a imagem daquele ambiente pode supor. É nessa ambiguidade que Lynch está interessada. O pai, ao levar seu(ua) filho(a) à instalação, ativará a segunda parte dessa relação entre corpo, afeto e linguagem que a obra instaura: um sentimento de culpa, ao ver seus filhos brincando com falos. Nesse momento se apresenta um componente importante.

Diante da dilaceração, a obra acentua a vulnerabilidade do corpo e suas distintas alegorias e possibilidades ? que podem atravessar desde a exposição virtual do corpo diante de câmeras em mídias sociais até a tortura ou mutilação ? em um processo que pode ser identificado como a crise moderna do sujeito.

Antes o lugar das práticas ocultas, o quarto agora nos convida à invasão; quer ser penetrado, isto é, ter sua estrutura/corpo habitada e  manipulada. Mas essa decisão não é tão fácil. É perspicaz como a artista realiza essa transição do gozo ao desconcertante. São objetos simultaneamente fálicos e perversos, sagrados e profanos. Ademais, por conta do acúmulo desses objetos no espaço e do dado cênico da obra, a sala expositiva tornou-se uma espécie de caverna: diminuta, escura e com uma atmosfera soturna. Contudo, ao adentrarmos, relacionamos essa casa a um corpo (preenchido de poros).
Esse reconhecimento se dá por meio de estruturas/membros moles e macios que aqui se configuram como o conhecimento de um corpo que se mantém na esfera da tatilidade. Este dado é ainda mais significativo quando se escolhe a pelúcia, um material presente tanto no universo infantil quanto no fetichismo.

Walter Benjamin assinala, por meio de Freud, que os brinquedos tendem, por um lado, a realizações da libido e, por outro lado, a absorver projeções dos adultos. A obra de Lynch pede uma fenomenologia dos sentidos porque é tão visual quanto tátil. Na ativação dessas ambiguidades, a proliferação desses objetos fricciona um lugar que fica entre a adoração, o refúgio e a culpa. Entre esse aglomerado simbólico de genitálias, é curioso que relações antropomórficas também sejam vislumbradas, e em muitos casos essa aparição acontece de forma totalmente aleatória.
A instalação transforma parede em ?pele?, e é esse ?novo revestimento? que recondiciona aquilo que sempre se adequou a ser inerte. Em tempos em que o discurso sobre a relação entre arte e organicidade vem ganhando contornos cada vez mais desgastados, Lynch nos impõe considerações sobre como lidamos com o nosso corpo e, mais do que isso, sobre qual seria efetivamente a ?margem de ameaça? para a aparição dessas formas no mundo. Não se trata de uma obra meramente participativa ou erótica, mas de como perversão, erotismo e aspectos lúdicos vão se contaminando, se apropriando e se misturando nessa obra, sobrando para nós uma atitude de perplexidade e encantamento. Um sorriso amarelo, talvez. Mas nunca descaso. Lynch aponta os paradoxos de uma sociedade (hipócrita) e as suas ambiguidades sexuais; o espectador agora está defronte do cotidiano que ele mesmo criou, dos elementos e perversões que ele glorifica e de que necessita.

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