Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Paulo Whitaker

THE JOURNEY IS THE DESTINATION

Guy Amado


"Toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual
caminho exterior em virtude dos caminhos e trajetórias interiores
que a compõem, que constituem sua paisagem ou seu concerto.”
                                                               G. Deleuze [em Crítica e clínica]

Este poderia ser mais um "texto convencional" sobre o trabalho em pintura de Paulo Whitaker. Em que se analisasse mais detidamente as qualidades plásticas, aspectos e relações formais que estruturam sua produção ao longo de mais de duas décadas de trajetória. Onde se apontaria talvez com desenvoltura as nuances que determinam a já tão comentada fronteira tênue entre figuração e abstração que sua obra instaura — embora não a tematize. E se evidenciasse o papel das imagens que conformam seu vocabulário visual nessa dinâmica, livremente sacadas do repertório do cotidiano e transpostas com stêncil contra o fundo plano das pinturas sem outra pretensão que não a de ativarem dispositivos de "geração de memória" , a ser construída a posteriori pelo observador.
Imagens que nas séries recentes se apresentam organizadas com mais disciplina, como que agrupadas em blocos, conferindo feições mais gráficas às composições. Talvez um movimento de contenção em relação a trabalhos imediatamente anteriores, quando formas-figuras se sobrepunham e se tocavam de maneira libidinal, conformando improváveis - porque elegantes - padronagens orgânicas, amebóides que se espalhavam pela tela. Uma presença figurativa agora mais estilizada, mas que ainda se mostra a serviço antes de um processo de livre-associação na construção de novos sentidos ou da evocação de uma memória universal que do estabelecimento de uma narrativa definida. Figuras que, apesar de estilizadas, parecem por vezes imbuídas de um certo senso de arcaísmo, evocativas de uma solenidade qualquer que, se procede, se vê no entanto rebaixada pela des-hierarquização que o traço rápido, a impressão estampada e o esquema compositivo lhes impõe. Como uma breve arqueologia do presente, onde não se apreende suas formas-figuras como indícios mas como fragmentos em suspensão da experiência mundana — remota, atual ou atemporal. Estabelece-se um limite impreciso entre o que é da ordem do visível tal como o tendemos a processar e as sinapses possíveis a partir das fontes imagéticas do mundo exterior, com seus significantes mantidos em chave aberta, envolvidos que estão em uma nova trama semântico-visual a ser permanentemente reconstruída.
Tal modelo de texto, portanto, não poderia igualmente deixar de se debruçar sobre uma idéia de controle presente na produção do artista. Controle mediado pelo olho e pela intuição, percebido nos limites precisos com que se manifesta certa espontaneidade expressiva e despretensiosa, num quase paradoxo bem-sucedido que no mais é um aspecto recorrente na poética de Whitaker, tanto em tela como em trabalhos sobre papel. Ou sobre a atenção à paleta cromática que de modo geral sempre se apresentou contida, no cuidado em evitar o apelo às qualidades sedutoras da cor, sem contudo negá-las de todo.
Mas não é esse o caso, ou o que este texto se pretende. Assim, não caberia também enfocar uma característica cara à práxis do artista: o dado auto-referente contido em sua fatura. A dimensão do fazer que se confunde com assunto mesmo do trabalho, o processual que não mascara as decisões, incertezas e correções que geram a pintura final. Uma pintura que se torna ativa a partir da decisão em não se comprometer ou mesmo interessar-se pela mera reprodução de um mundo tornado objeto — mas que não se furta a tomar emprestado deste mundo seus objetos, para reordená-los ao sabor de uma lógica extrínseca à da pulsão narrativa. No anseio, enfim, de construir uma imagem que possa sustentar-se por si, nas palavras do artista. Se assumirmos, por exemplo, que Cézanne liberta a pintura de uma função essencialmente óptica, trazendo de volta as coisas à superfície da imagem — em muito pelo uso carnal, volumétrico que faz da cor —, Whitaker à sua maneira o faz por via inversa, reafirmando a questão da planaridade pelo embate que opera com o uso da imagem aplicada à pintura.
É à margem destas leituras e interpretações possíveis que Paulo Whitaker segue trabalhando silenciosamente, re-elaborando o universo personalista de sua produção pictórica e reafirmando o grau de compromisso com uma práxis avessa a maiores teorizações — embora não alheia a uma permanente condição de auto-reflexão. Postura que me imbuiu da pretensão de que este texto não deveria se conformar, como mencionado de saída, num texto crítico "convencional" - o que no entanto não parece ter se cumprido.

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