Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Tiago Sant’Ana

Baixa dos sapateiros

Clarissa Diniz

 A manufatura de sapatos, atividade que batizou como Baixa dos Sapateiros a região do comércio popular de Salvador, adquiriu protagonismo na capital baiana do final do século XIX por um processo absolutamente perverso e historicamente nevrálgico para a formação social do país: a escravidão e sua cínica abolição. 

Quando, em 1888, nesta que foi a última nação do mundo a fazê-lo, a escravização de milhões de negros foi legalmente proibida, a transformação do status jurídico daqueles corpos – que finalmente puderam retomar a dimensão de humanidade que lhes havia sido saqueada pela colonização – implicou numa série de gestos simbólicos de enorme significado. Subalternizados pela atribuição de uma espécie de “inferioridade” construída em relação a uma suposta “superioridade” europeia, masculina e branca, as pessoas negras elaboraram signos que distinguiram seu então recente status de livres daquele imediatamente anterior, de escravizadas. Distinções que foram, por sua vez, um duplo das diferenciações culturais inventadas pelas oligarquias para se manterem em elevadas posições sociais, diante das quais quem não era escravo era, no mínimo, servo de algum senhor – fosse feudal, fosse bíblico, fosse de engenho. Desse processo participaram os sapatos. 

No Brasil dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, poucos possuíam sapatos. A maioria sequer tinha o direito de possuí-los. Calçar algo era índice de “civilidade”, uma vez que animais e sujeitos “insuficientemente humanos” não usavam calçados. Mais do que utilitários, sapatos eram, portanto, socialmente distintivos. Em nossa sociedade escravocrata, adquiriram imensurável força simbólica, ainda hoje evidente em sua fetichização pela indústria da moda enquanto, perversamente, persistem as condições econômicas e políticas que fazem com que milhares de pessoas vivam sem casa, sem emprego e sem sapatos. Pessoas em sua maioria negras, inquestionável prova de que a abolição é um projeto inacabado.

Tiago Sant’Ana, artista negro da Bahia, tem sua vida atravessada por essa história. Atento aos processos de distinção social, nos últimos anos esteve dedicado a uma série de trabalhos que, a partir do açúcar refinado, tratam da colonialidade e, especialmente, do projeto de embranquecimento do Brasil, uma das mais cruéis tentativas de apagamento da história da escravidão e, com ela, de invisibilização de milhões de sujeitos, seus conhecimentos e suas culturas. 

Lidando diretamente com o açúcar, Sant’Ana elaborou imagens e situações poéticas que demonstram a violência colonial obliterada pela doce alvura desse carboidrato que, conhecido como “ouro branco”, foi uma das principais moedas do imperialismo europeu. Comercializado globalmente por Portugal, o açúcar serviu também, por meio da criação de uma culinária rica em doçura, como elemento de distinção econômica e política daquele país e seus oligarcas diante de outras nações, tornando-se um dos principais capitais implicados na cartografia do poder a partir do século XVI. A esse conjunto de trabalhos em torno do açúcar, já apresentados no Rio de Janeiro na mostra individual Casa de purgar (Paço Imperial, 2018), soma-se, agora, uma nova série de trabalhos cujo elemento central é, justamente, o sapato. 

Na série de fotografias Sapatos de açúcar (2018), nas quais o artista, submerso na Baía de Todos os Santos, protege um par de calçados de açúcar do risco de iminente dissolução é, decerto, a imagem-síntese da convergência entre ambas das pesquisas de Tiago Sant’Ana, cujo braço mais recente é agora apresentado em Baixa dos sapateiros. 

Além de objetos que evocam a vulnerabilidade social decorrente da história da produção do ouro branco – a exemplo de Cana-coluna, caules de cana-de-açúcar em gesso, e Aguardente, garrafas de cachaça onde se leem frases sobre a nostalgia, o banzo e o sofrimento de ter tido a vida destituída pela escravidão –, a exposição reúne peças novas nas quais o açúcar e a colonização são panos de fundo. É o que evidencia a série de fotografias Refino #5, nas quais os pés descalços dos personagens escravizados de gravuras de Debret e Rugendas são iluminados pelo açúcar que recobre tudo que está em seu redor, chamando atenção para elementos que, num imaginário qualquer, ainda que discretos, podem ser especialmente elucidativos.

Nessa série, ao circunscrever pés negros, o açúcar já não serve exclusivamente à sua própria imagem, mas àquilo que, dada a sedução de sua riqueza, de sua branquitude e de seu sabor, ele termina por obliterar. Os sapatos, por sua vez, inscrevem-se na mesma operação, uma vez que sua presença, tanto na obra de Tiago Sant’Ana quanto na história, não gira em torno de si mesma, mas remete a processos que, perpassando-os, a eles não se referem todavia. 

O centro dessa operação está no modo como os sapatos adquiridos pelos ex-escravizados não foram, num primeiro momento, necessariamente calçados, como observa texto de Louis Albert Gaffre, narrado como introdução a uma sequência de imagens de homens negros com sapatos a tiracolo no vídeo Calçados: “o primeiro gesto da liberdade foi (...) aprisionar os pés nas fôrmas escolhidas – por consequência, mais ou menos adaptadas. Digo mais ou menos, mas a verdade da história me obriga a dizer muito menos do que mais, porque os bons pés dos bons negros, pouco acostumados a estar estreitados, protestaram com estardalhaço e foi o suficiente para que se visse o espetáculo mais inesperado como primeiro efeito da libertação. Negros e negras, em todas as cidades para as quais se dirigiam, passavam felizes e orgulhosos, com a postura altiva, descalços. Mas todos levando um par de sapatos – por vezes à mão, como um porta-joias valioso; por vezes a tiracolo, como as bolsas vacilantes da última moda mundana”. 

Como narram as vagarosas e silenciosas imagens que no vídeo se interpõem a esse texto, sapatos como índices de distinção social performam não exatamente a “altivez” sublinhada pelo viajante europeu, mas uma espécie de torpor que não cessa após a abolição. Com o gesto de abandonar os sapatos numa pilha como quem reencena a vala-comum na qual foram lançados tantos corpos subalternizados, não é a ficção da soberania da libertação que protagoniza a obra de Tiago Sant’Ana, mas as suas contradições. É, portanto, como antídoto às mistificações de concepções autorreferenciais da abolição – para as quais estar juridicamente livre é suficiente, ainda que socialmente descobertos de políticas de reparação dados os séculos de violência e de impossibilidade de acesso àquilo que pretensamente nos civiliza – que se afirma sua obra.

Para tanto, nesse recente conjunto de trabalhos, o artista recorre a sutis operações de fratura entre narrativa e fato, como evidente na série Lisboeta, pranchas nas quais um pequeno texto descreve uma ação que teria ocorrido nas situações apresentadas pelas imagens, as quais, entretanto, não estão nelas documentadas. Ativam, pela ausência de plena equivalência entre as partes da narrativa, a força performativa da linguagem, ela mesma capaz de realizar e de instituir: ela mesma um acontecimento. Reside, por isso, no exercício de imaginação histórica de Tiago Sant’Ana, a sua potência política e a nossa necessidade de obras que, como a dele, criadas desde a perspectiva dos corpos que viveram o avesso da história, possam colaborar para a metamorfose crítica das vis consequências da formação do Brasil, rumo à reparação e à atrasadíssima – e por isso cada dia mais urgente – produção de justiça social.

 

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