Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Tiago Sant’Ana

Com açúcar e sem afeto

Lilia Moritz Schwarcz

 No Brasil, sapatos foram sempre uma maneira de distinguir escravizados e escravizadas de pessoas livres. O impedimento nunca constou de qualquer lei escrita, mas sobreviveu a partir da força inconteste do costume. Na realidade, os sapatos eram vedados aos cativos e cativas que, por mais vestidos que estivessem, fossem eles escravos domésticos, mineradores ou urbanos, eram sempre representados com seus pés na terra, no cimento das cidades, ao rés do chão.

A força da “falta” era tal, que logo após o 13 de maio de 1888, data da abolição formal da escravidão no Brasil, contam as testemunhas, que muitos correram às lojas para comprar os desejados objetos. No entanto, como seus pés estavam acostumados à lida dura do dia a dia, à sanha do trabalho pesado, logo calejaram e fizeram bolhas. E assim muitos libertos e libertas, foram vistos, felizes e orgulhosos, levando sapatos amarrados pelos cadarços à tira colo, como se fossem troféus de liberdade. E eram...

Símbolo forte, os sapatos também se converteram em sinônimo de liberdade. Mesmo antes da abolição da escravidão, para aqueles que encontravam espaços nas pequenas frestas do sistema, fazer-se fotografar com veste completa, e trazendo os pés calçados, era sinal de enriquecimento, mas, ainda mais, de autonomia e emancipação. Não apenas daquela “ganha” a partir da letra fria da lei. Mas sobretudo daquela suada, lograda pela força, pela insistência, pela rebelião, pela educação e pela saudável teimosia de não desistir. 

Logo depois da promulgação da Lei Áurea, medida conservadora e que representou uma clara solução de compromisso – pois anunciava a liberdade, mas não incluía qualquer projeto de inclusão social dessas populações que conheceram, desde sempre, a desigualdade – um provérbio popular começou a correr as ruas das grandes cidades brasileiras. Dizia-se que “a liberdade podia ser negra; já a igualdade era branca”. Foi assim que, logo depois da promulgação, foi ficando claro como nada de fundamental havia mudado. Ou melhor, saber que não existiam mais escravizadas e escravizados no país era, sem dúvida, uma grande conquista. No entanto, com a voga das teorias do determinismo racial – as quais estabeleciam que entre negros e brancos existiam diferenças tão essenciais como abismais, e que a mestiçagem de raças era sinônimo de degeneração –, ficou logo evidente como o período do pós-emancipação tinha data pra começar, mas não para acabar. 

Não por coincidência, até os dias de hoje, impera entre nós um racismo estrutural, que não é apenas herança do passado; ele continua presente e sendo recriado no presente. Diferenças nas áreas da educação, do transporte, da saúde e até mesmo do lazer, saltam dos dados dos censos oficiais, mostrando como até os dias de hoje raça é um “plus” perverso no Brasil. Diferenças ainda maiores são encontradas nos registros de nascimento e morte. Estamos matando uma geração de jovens negros moradores das nossas periferias e não existe qualquer sinal de uma política mais efetiva por parte do governo, visando sanar esse verdadeiro genocídio nacional.

Esses são todos temas presentes, de inúmeras maneiras. na nova exposição de Tiago Sant’Ana chamada “Baixa dos sapateiros”. Ela trata, mais exatamente, dos sapatos e do simbolismo que os cercou no Brasil, mas não como “falta”; antes como uma forma de conquistar cidadania; aquela que jamais chegou completamente para a população negra do país. 

A Baixa dos Sapateiros não é um lugar qualquer. Trata-se de um local único em Salvador, já que foi justamente impulsionado pelo comércio de sapatos, avidamente comprados pelas pessoas recém-libertas. A região não ficou, todavia, retida no passado; ainda hoje continua sendo conhecida por seu grande fluxo comercial e popular.

Tiago Sant’Ana, por seu lado, borra propositadamente temporalidades, transformando o simbolismo em metáfora; o sofrimento em potência que por sua vez vira poesia e arte. O tema não é com certeza novo na obra do artista; o tratamento sim.

Em “Apagamento #1” (2017), ele apresentou um vídeo onde misturava toques de candomblé com referências a uma chacina ocorrida em 2015, no bairro que leva o nome de Cabula. Nesse mesmo local, existia outrora um quilombo, perigosamente próximo de Salvador, e que costumava apavorar as elites da capital toda vez que os tambores soavam. Nesse trabalho, o artista apresenta seu próprio rosto que gira ao som do Cabula. Por sua vez, a palavra Cabula aparece gravada no corte do cabelo de Tiago. No entanto, como o tempo é senhor de destinos, o termo vai desaparecendo, na medida em que o crescimento dos fios tende a dissipar o registro. O resultado é o próprio apagamento das marcas, com o volume dos cabelos do artista, mas também da memória rarefeita sobre a chacina. A arte, aqui, assume a função de lembrança; de não deixar esquecer.  

Na exposição “Casa de Purgar”, aberta neste ano no Museu de Arte da Bahia, em Salvador, e no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, Tiago trabalhou com os engenhos de açúcar e o gosto agridoce do produto. Doce por causa dessa verdadeira mania, que, ainda no século XVIII mudou hábitos alimentares e o comércio mundial. Azedo por causa do agrume da escravidão, que fez do Brasil um lugar central nas histórias afro-atlânticas que se iniciaram a partir do século XVI. Nesse caso, o açúcar invade a tudo, e sobrevive aos engenhos outrora grandiosos do Recôncavo, que agora guardam apenas uma estrutura corroída pelo tempo. Entre o negro dos escravizados e o branco do produto agrícola surge uma sinfonia estranha, que mistura poder, hierarquia e decadência.  O branco do açúcar não lembra mais pureza, e sim a violência desse sistema que supunha a posse de uma pessoa por outra.   

Como se pode notar, a partir desses poucos exemplos, é com rara coerência que o artista vai desenrolando temas, e tirando deles novas decorrências ou possibilidades. No caso dessa exposição, novamente com rara sensibilidade, Tiago explora os “sapatos” como sintomas; grandes detonadores de contradições que procuram esconder formas enraizadas de hierarquia que, de tão naturalizadas, parecem ser invisíveis. Pois não são, e o artista explora justamente esse espaço do “não dito”, do oculto, a partir de abordagens e suportes diferentes – fotos, vídeos e objetos. 

Na primeira série fotográfica, chamada “Sapatos de açúcar”, o próprio artista se faz retratar nas dependências do antigo Engenho da Freguesia, em Candeias, localizado na Baía de Todos os Santos, em frente a Ilha de Maré. Açúcar em geral derrete na água; dissolve e adocica os líquidos.  Nesse caso, todavia, os sapatos de açúcar cristal, que não por acaso lembram os sapatos de cristal da princesa Cinderela (que também é retirada da servidão por causa deles), ficam protegidos nas mãos de Tiago, que mais uma vez veste branco. O branco do açúcar e das vestes do Candomblé é dessa vez como que purificado. Nesse caso, eles não são feitos para serem calçados, mas para permanecerem cristalizados como açúcar, sob o olhar tão firme como neutro do artista. O produto que gera a escravidão é agora retido no tempo, petrificado.

Na segunda série, “Refino #5 (Pés)”, vemos pés descalços retirados de gravuras coloniais oitocentistas. Detalhes das aquarelas dos viajantes europeus, que descreveram o Brasil de maneira sempre idealizada, sem violência, mas com muita hierarquia, ganham agora o primeiro plano. Se nas ilustrações os pés descalços somem como detalhes desimportantes, aqui eles merecem lugar de destaque. Pés alongados, com dedos separados, surrados, sempre negros aparecem pisando a terra das ruas, o solo das casas grandes, ou o sisal de que são feitas as esteiras das senzalas. Novamente pés dialogam, de forma ruidosa, com o açúcar que dessa vez cristaliza em volta dos detalhes das gravuras, quase que compondo uma moldura. Uma moldura doce para uma imagem amarga. 

“Lisboeta” é o nome da terceira série que compõe essa exposição. Feita do diálogo entre as fotos e o texto datilografado, o conjunto desconcerta ao criar um ruído entre o que se vê e o que se lê. Um espaço “entre”. Numa delas, se pode observar um calçador de sapatos exposto, ou jogado, sob um solo de madeira tratada. Escreve o artista: “Permaneci em pé e imóvel neste espaço durante 1888 segundos calçando sapatos 4 números menores do que meu tamanho habitual”. 1888 não é data para ser celebrada, é ano para criticar e refletir. Não se escapa ao fato de ter sido o último país a abolir a escravidão, e de terem entrado no território quase metade dos 12 milhões de escravizados e escravizadas que saíram compulsoriamente da África. Imagine-se o esforço de apertar os calçados num pé que tem outras proporções. Novamente o desconcerto das palavras destrói o calçador eugênico e feito para facilitar e evitar a dor; não o contrário. 

Uma segunda foto apresenta uma cena bastante conhecida, quase um clichê, ao mostrar um navio solitário no horizonte, navegando tranquilo, em águas serenas, no momento do pôr do sol. A imagem é idílica, mas soa também ingênua tal o grau de familiaridade que ela introduz. Caminhando na via oposta, Tiago trabalha no hiato entre o efeito da visão e o sentido do texto datilografado pelo artista: “Dentro de um barco à vela, na altura do encontro entre o Rio Tejo e o Oceano Atlântico, às 21:40 do verão lusitano, comecei a ler em voz alta o nome dos navios negreiros portugueses até que a escuridão não tenha deixado mais encontrar as palavras com os olhos. 1. Amável Donzela; 2. Boa intenção; 3. Brinquedos dos meninos; 4. Caridade; 5. Feliz destino; 6. Feliz dia a pobrezinhos; 7. Graciosa vingativa. 8. Regeneradora”. Sempre me causou grande mau estar anotar os nomes dos navios negreiros. Diante de tamanha culpa parecia mais fácil batizar os tumbeiros com apelidos carinhosos, alegres, quase maternais, do que reconhecer o crime de “lesa humanidade” praticado no interior dessas naves, mas também antes e depois do embarque. Resta, pois, uma dupla contradição: aquela do contraste entre a foto e a legenda; aquela dos títulos das embarcações que em nada combinam com a situação que as caracterizam: o transporte e o comércio de “almas humanas”.  

Por fim, uma última foto apresenta, tal qual cartão postal, a Praça Pombal. Nesse caso, a imagem lembra as propagandas de turismo de Portugal, que apresentam com orgulho a imagem do local que homenageia ao primeiro ministro de d. José, que reconstruiu a capital dos lusitanos depois do terrível terremoto de 1755, manteve o comércio negreiro ativo e crescente, assim como tratou de colonizar os indígenas. Mais uma vez, o texto não glorifica; ao contrário, sublinha a política de destruição empreendida pela metrópole. “Numa segunda feira, às 13 horas, em frente ao monumentos Marquês de Pombal, em Lisboa, pronunciei as palavras “mundá”(roubar), “yuká (matar); “resarai” (esquecer) na língua nheengatu – proibida em 1750 no Brasil, tornando obrigatório o uso do português como idioma único”. Os nativos das colônias eram entendidos como povos “sem”, por isso deveriam perder também sua língua e assim seu passado. 

“Aguardente” é o nome de um produto produzido paralelamente ao açúcar, com os restos da cana, e que titula outra seção da exposição. Essa era uma economia secundária, mas virou uma espécie de escapatória para a dor do cotidiano. Água ardente, água que passarinho não bebe, a aguardente entrou nos costumes brasileiros, uma vez que não era, como o açúcar, produto de exportação. Já na exposição de Tiago Sant’Ana, a cachaça está presente, mas o que mais chama atenção é o seu suporte. Garrafas de vidro translúcido com frases gravadas a laser deixam entrever comentários do tipo: “Refazendo-se em cada passo”. “Com memórias naufragadas no Atlântico”; “Meu corpo destila açúcar e saudades”. O objeto de arte vira sua metonímia; aquele de uma garrafa boiando no mar, resto último de um naufrágio, ou portador de uma mensagem de um remetente desesperado e à cata de ajuda. Em geral essas mensagens eram encontradas enroladas dentro de uma garrafa que boiava a esmo pelo mar. No caso da obra de Tiago, a mensagem fica gravada e faz parte intrínseca do próprio objeto. Já o açúcar destila saudades (e não afeto) enquanto as memórias se perdem ao cruzar esse imenso Atlântico; ponte de ida, não de retorno.   

Há também um vídeo, que completa a exposição. Realizados no Museu de Arte da Bahia, que serve como ambientação, e exemplo, para qualquer casarão da época do ciclo da cana de açúcar, eles apresentam os mesmos corpos negros com dorsos nus, descalços e com sapatos à tiracolo; apoiados em seus ombros. A prática remete ao passado, ao começo do período conhecido como pós-emancipação, quando a República prometeu inclusão mas entregou exclusão social, mas também ao momento presente. Um detalhe faz uma imensa diferença: os sapatos pendurados nos dorsos ou nas soleiras das portas são sempre recentes, como é ainda recente a nossa experiência do pós emancipação. 

Arte não imita realidade; ela a produz reflexivamente. Por isso as obras que compõem essa exposição não precisam ficar restritas a seu contexto. Elas fazem mais, quase que produzem o seu contexto. Criam uma sensação de ‘inconclusão”, um ruído que impede a mera contemplação e impõe, com sua beleza, um grande silêncio. E quando há silêncio é porque sobra contradição. 

A arte de Tiago Sant’Ana faz política com estética, com a força das formas, a potência libertadora do negro insubmisso, com o branco do açúcar para exportação e o comércio da mão de obra escrava que atravessou, como diz Alberto da Costa e Silva, “esse rio chamado Atlântico”. Esse é um retrato em preto e branco. De preto no branco.    

 

 

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