Raro rigor
Paulo Sergio Duarte
Quando um artista marca sua obra com forte caráter nós a reconhecemos imediatamente; à distância mesmo. Antes de qualquer psicologia, Ferrater Mora nos ensina, que "o termo ‘caráter’ significa marca ou nota que assinala um ser e que por isso o caracteriza diante de todos os outros." Este é o caso do trabalho de Célia Euvaldo, sempre marcado por raro rigor. Quem está em contato com a pintura contemporânea no Brasil, e não são poucas as pinturas poderosas presentes no interior desse vale-tudo infernal que se tornou o meio de arte, entra numa sala de galeria, museu ou qualquer outra instituição e, se existe um desenho ou tela da artista, este logo se distingue. Os artistas que alcançam essa marca devem exclusivamente à potência poética que os individualiza. Não é exagero que essa marca foi obtida por uma rara e rigorosa economia de meios, sobretudo na sua conhecida e reduzida paleta, durante muito tempo, comprimida a duas cores: o preto e o branco.
Essa obra que já percorre quase quatro décadas, se tomarmos como ponto de partida sua participação numa exposição coletiva no Solar Granjean de Montigny, na PUC-Rio, em 1981, passa por um longo processo de aprendizado e de experiências realizadas por uma artista absolutamente consciente de seus meios, recursos e procedimentos, como é demonstrada na Cronologia que redigiu para seu livro Célia Euvaldo.
Insatisfeita, no melhor sentido, Célia volta a nos surpreender, agora, nessa exposição no Rio de Janeiro, em 2017. Além das colagens malevitchianas, surpresas também, por um rigor geométrico que nas suas pinturas nunca foi uma preocupação presente, surgem as pinturas com aguadas. Estas despertam um interesse particular para a experiência estética na sua obra. O preto impõe-se com sua presença já conhecida no trabalho e a aguada, em cores tênues, delicadas, diria mesmo, discretas, contraria a imposição do preto, pela sua delicadeza. Como em Rothko ou em muitos trabalhos de Mira Schendel, é como se estivéssemos flagrando o aparecimento da arte no mundo. Temos então duas relações simultâneas e opostas quando estamos diante dessas obras. O preto como se sempre estivesse lá, uma arte que estaria no mundo antes de nós tal a força de sua presença, enquanto a aguada nasce, vem ao mundo, no momento mesmo em que a olhamos. Toda uma nova experiência poética surge nesses novos trabalhos de Célia Euvaldo.
Permitam-me uma digressão antes de voltar à obra da artista. Num texto bastante conhecido, o filósofo Giorgio Agamben interroga "O que é o contemporâneo?". Logo nos adverte: "Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela." Mais adiante afirma: "Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade (...)." "Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade." Concluindo a apresentação de seu seminário, o filósofo nos diz: "É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora."
Ocorreu-me que a obra de Célia Euvaldo poderia ser vista como uma metáfora visual do pensamento do filósofo e, mais que isso, absolutamente contemporânea segundo as exigências do que é ser contemporâneo. De acordo com a artista, no princípio, seus trabalhos eram multicoloridos. Portanto, aderindo a seu tempo sem dele tomar distância. Era a época do retorno à pintura onde, não só aqui no Brasil, mas especialmente na chamada Transavanguardia italiana, multiplicavam-se as telas multicoloridas, muito decorativas, para alegria de marchands e arquitetos de interiores. Logo que se afasta dessa adesão, surge a cor negra em procedimentos variados, todos muito pessoais que logo marcam o caráter único do trabalho, durante mais de vinte anos. A escuridão do presente aparece com força diante de nossos olhos. E é sobre essa escuridão que a artista fixa sua atenção explorando-a numa extensa aventura pictórica. Sem esquecer o quadrado negro de Malevich (1916) e os quinze anos de telas negras de Ad Reinhardt, durante os anos 60, a corajosa pintura da artista se inscreve do modo mais legítimo nessa tradição. Agora, nas pinturas com aguadas mais recentes, surgem, à sombra, outros resultados dessa corajosa experiência.
E, repito, a artista explora duas formas de a arte estar no mundo: a potente presença da cor negra e os delicados aparecimentos das aguadas. A fratura dessas duas formas está presente e é a essência dessa contemporaneidade e do próprio trabalho. Preparemo-nos para novas experiências sempre apresentadas com raro rigor.