Adiante, aos solavancos
José Augusto Ribeiro
Há três décadas e meia, Paulo Whitaker elabora um sistema singular de pensamento e produção de pinturas e desenhos. Não se trata de método, porque não há regra de como fazer nem resultado preestabelecido a ser alcançado. Mas o artista institui, nesse período, uma ética e uma economia próprias de trabalho, que contribuem para distinguir sua produção no cenário geral da arte contemporânea. Whitaker constitui, por exemplo, um repertório, em constante desenvolvimento, de formas e figuras repetitivas e recorrentes – que tanto se multiplicam por duas, três, meia-dúzia e até dezenas de vezes em uma mesma obra, como se proliferam por obras diversas, realizadas ao longo do tempo.
Esses elementos são volutas, retângulos, quadrados, círculos, meio-círculos, segmentos de reta. São formas que se parecem com asas, nuvens, lâminas ou orelhas de coelho. São árvores, troncos de árvore, ramos de plantas, frutos. São cabeças humanas, bustos, pássaros, cavalos. São desenhos esquemáticos, com traço único, de casas que se emendam umas às outras pelas linhas de um mesmo caminho. São pratos, troféus, recipientes, por aí vai... Em uma variedade que abrange formas geométricas, a reprodução de detalhes de arquitetura e mobiliário, a representação de seres e objetos, sem opor figurações a abstracionismos. Em comum, são estampas simples, diretas, com apelo gráfico e tendentes a produzir impacto visual imediato. Em seu andamento, o trabalho estrutura, assim, uma imaginação que é, ao mesmo tempo, ampla, fragmentária e emblemática.
Agora, se não há método de produção, existem, isso sim, procedimentos e princípios que particularizam os modos de realização dessa obra. No curso de sua trajetória, Whitaker chegou, de fato, a soluções de feitura peculiares. Entre outros motivos, por combinar operações mecânicas, automáticas (e que, apesar de manuais, seriam “frias” por não envolverem expressividade), com improvisação, com decisões tomadas à queima-roupa, sem planos prévios (em processos dos quais se pressupõe liberdade total e nos quais a intuição seria, a rigor, preponderante). Dessas fricções, resultam trabalhos que têm sentido de continuidade, em razão dos jogos de repetição e diferença armados entre uma obra e as demais, ao mesmo tempo, em que mantêm o ímpeto do imprevisto, as qualidades do espanto e da surpresa, ou daquilo que fora feito a partir de escolhas rápidas, de ações repentinas e com o entusiasmo do exercício, a partir de figuras prontas e escolhidas de antemão.
Desde a metade da década de 1990, o artista reproduz parte significativa dos elementos de seu trabalho, na tela e no papel, por meio do estêncil. Whitaker recorta a silhueta dessas formas e figuras em pedaços de papel, para aplicá-las com tinta (ou spray, ou com uso do pincel) sobre fundos que, por sua vez, ou são monocromáticos, homogêneos e uniformes, ou são manchados, com duas ou mais cores misturadas e “raspadas” no suporte (como na técnica da serigrafia). Não raro, o artista besunta de tinta também as margens dos estênceis, para imprimir os contornos dessas matrizes nos trabalhos.
Até certo ponto, é uma pintura maquinal – na medida em que os gestos do artista se restringem ao espalhamento da tinta pelos estênceis, à transferência das formas para a superfície e ao preenchimento daquele plano. No entanto, apesar de tais mecanismos, esse não é um trabalho que busca a precisão, que esteja atrás da reprodução sem falhas de silhuetas prontas. Ao contrário: a pintura e o desenho de Whitaker são sujos, irregulares, acumulam os sinais processo e de sabe-se-lá-que ocorrências. Ou melhor: são sujos e francos, na exposição de seus fatos. As certezas, as dúvidas, os gestos obstinados, mas também aqueles que inspiram hesitação; os movimentos categóricos e exatos, os escapes, as sobras e as ações que serão provavelmente consideradas “erros” (levando em conta ainda que, nesta categoria, existem os involuntários e os deliberados), está tudo ali. De novo: é um trabalho feito com as formas recortadas das “máscaras” e no ardor de uma sequência contínua de operações sem programa prévio e, ao final, disponíveis à inspeção.
É interessante notar, nesse ponto, como a pintura de Whitaker tem algo do desenho, do caráter projetivo do esboço, das notações rápidas, de algo que, enfim, está ainda em construção. Em especial pelos traços e manchas deixados em aberto durante a elaboração do trabalho e que, incorporados aos resultados, tornam-se índices daquela feitura – restando, por consequência, a ideia de que, a partir dessas marcas, da sequência de impressões de formas e figuras, seria possível reconstituir a produção completa do trabalho, do início ao fim. Do mesmo jeito, os desenhos do artista expõem uma inteligência pictórica na lida com as cores, na distribuição de seus componentes pelo espaço bidimensional, etc.
Porém, tanto as pinturas quanto os desenhos do artista têm algo (que não é pouco) da colagem: na acumulação e na disposição das figuras nas superfícies; nas junções entre elementos aparentemente sem conexão anterior, mas que ali se apresentam vinculados e interdependentes; nas maneiras como esses elementos aderem à superfície do trabalho. Chega a ser estranho que sejam todos “contemporâneos”, que venham todos do mesmo lugar, produzidos em curto espaço de tempo, porque, de cara, aparentam ter procedências várias.
No trabalho de Whitaker existe, ainda, algo da gravura na repetição e na reprodução das figuras. Por fim, é notável a lógica de montagem – aparentada com os procedimentos de construção de uma estrutura, de uma escultura formada na reunião entre partes descontínuas – que surge internalizada em operações de justaposição, empilhamento e equilíbrio com que Whitaker organiza seus componentes em determinadas pinturas. O artista arma, nesses trabalhos, estruturas que costumam ser engenhosas, que são às vezes brutas, no entanto, sempre elegantes e leves, dispostas em equilíbrios improváveis e, por isso mesmo, na aparência, arriscados, virtualmente instáveis, como se a qualquer momento aquele maquinismo pudesse desmoronar.
Nas obras de Whitaker reunidas nesta exposição, produzidas desde o ano passado, prevalece a austeridade descrita acima. As pinturas apresentadas aqui substituem a vibração de formas sobrepostas e sobrecarregadas – característica de trabalhos anteriores, realizados entre 2000 e meados da década de 2010 – por superfícies com um número menor de elementos, em que a maioria dos componentes está disposta lado a lado ou em justaposição. É comum, por exemplo, que nessas obras as formas se encostem, liguem-se sutilmente, pelas pontas. Os elementos são colocados, dessa maneira, em relação aberta e direta uns com os outros – autônomos e, a uma só vez, em contato. Quase como se estivessem a lembrar que a produção como um todo conduz sua marcha, assim, pelas extremidades da linguagem, a fim de estender-se ao limite, para aproximar-se de outros conhecimentos, técnicas e soluções – da colagem, da gravura, da serigrafia, da escultura.
Mas é pintura e não é outra coisa. É desenho e não é outra coisa. Trata-se, ainda assim, de uma obra impura, marcada por atravessamentos entre linguagens diversas e por um sem-número de contaminações. Não há uma suposta essência a ser preservada. E nada, aqui, pretende-se fixo, homogêneo ou coeso. Aliás, o título da exposição talvez tenha a ver com isso: Solavanco, ou entre o cético e racional e o místico e sensível. O enunciado parece, de saída, não reconhecer a transição simples e sem mediações dessas categorias do campo da filosofia para o debate sobre arte. Em seguida, a recusa parece desmantelar, com bom humor, polarizações que soem rígidas e simplistas, como opor projeto e improviso, repetição e surpresa, diante de um trabalho desses de Paulo Whitaker – em que, a cada aparição, uma forma é sempre outra diferente, ao assumir posições, espessuras, texturas, cores variadas... A travessia então continua, aos solavancos.