Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Renata De Bonis

As coisas não ditas

Jacopo Crivelli Visconti

Num artigo sobre o filme Wait (1968), de Ernie Gehr, publicado no Village Voice em 1968, Jonas Mekas tentava sintetizar a dificuldade de definir o que é que estamos vendo, quando lidamos com arte contemporânea: if WAIT were a 19th century 'narrative', these two people who are now sitting in Gehr's room, no doubt, would be talking, exchanging some lines, performing, going through some psychological bits. (...) In a later 20th century or early 21st century film, which is where Gehr's film is, the event is transposed to another level, (...) we are following completely something else, something that cannot be told in words, something that is happening on a mental level... E de fato a ausência de uma narrativa convencional, como a que permeou a literatura e a arte até o final do XIX século, seja talvez a característica mais marcante e universal da produção contemporânea. Cabe sempre ao observador juntar as peças, compor, a partir dos fragmentos e das pequenas pistas deixadas pelo artista, uma imagem completa, ou pelo menos compreensível. Algo assim como a foto que, numa cena memorável de L’amour en fuite (1979), Antoine Doinel reconstrói com os cacos de uma foto despedaçada e jogada no chão de uma cabine telefônica por um desconhecido, chegando ao rosto da mulher que amaria a partir de então. Pode parecer, evidentemente, uma história linda demais para ser verossímil, e é exatamente disso que se trata: ao passo que conta uma história romântica e aparentemente ingênua, Truffaut faz meta-cinema, deixa claro que tudo o que vemos não passa de um pretexto para fazer (e ver) cinema. Analogamente, boa parte da pintura contemporânea parece constantemente questionar e tencionar o significado e o valor do que está representando, como se os temas e sujeitos escolhidos não fossem mais do que pretextos para fazer (e ver) pintura.

Várias das obras incluídas nesta exposição lidam direta ou indiretamente com essas questões, brincam com a suspensão, fragmentação e explosão da narrativa, dão pistas para possíveis interpretações, e logo depois, abruptamente, recuam para a escuridão. Com freqüência, imagens apropriadas das fontes mais diversas sobrepõem-se em camadas nitidamente separadas: os objetos, personagens, edifícios ou manchas de cor nunca se fundem por completo. Espécie de equivalentes pictóricos dos objects trouvés duchampianos, as imagens, apropriadas das fontes mais diversas (jornais, revistas, livros, google, anúncios, projetos de arquitetura...) parecem recusar programaticamente uma osmose que acabaria mitigando seu valor de citações. Porque é de citações que se trata, fragmentos de histórias alheias roubados e rearranjados em montagens precárias, sem a ambição de constituir uma narrativa coerente, aliás com o objetivo, explícito, de que os pedaços continuem tangivelmente separados. Denota talvez, esta necessidade de se escorar em elementos apropriados e reciclados, a aspiração a um equilíbrio que se sabe, contudo, já irremediavelmente perdido, como no célebre verso da Waste Land de T.S. Eliot: these fragments I have shored against my ruins. Ou talvez, pelo contrário, denote a decisão de abdicar definitivamente da busca de qualquer linearidade, optando conscientemente pela instabilidade, como faz desde sempre Jean-Luc Godard: nossos primeiros filmes foram apenas filmes de “cinéphiles”. Principalmente os meus (...). Eu fazia uns enquadramentos relacionados com outros que eu conhecia de Preminger, de Cukor, etc... É o prazer da citação, de que nunca abri mão...

(...)

As obras de Renata de Bonis, por sua vez, baseiam-se sempre em lembranças pessoais, às vezes mediadas por instantâneas tiradas pela própria artista, em outros casos pintadas de memória. Nesse seu se sentir confortável no âmbito de um universo pessoal, que não precisa, para se alimentar, atingir a fontes externas, Renata parece se distanciar do modus operandi da maioria dos outros pintores da sua geração (não apenas os que participam desta exposição). Coerentemente, sua pintura foi progressivamente se despojando, recentemente renunciando, para citar apenas a mudança mais evidente, ao fundo decorativo, de alguma maneira análogo ao da Ana Elisa Egreja. Até a paleta de cores, sempre contida, extremamente coerente e meditada em suas pequenas variações, confirma a impressão de estar diante de uma obra que acontece seguindo ritmos exclusivamente próprios. Não é por acaso que entre os amigos que a Renata nos apresenta, numa pequena tela intitulada I think I need new friends (2008), que retrata, simplesmente, uma estante com alguns livros, estão Sean Scully, Luc Tuymans e Giorgio Morandi, isto é, pintores que elevam a reflexão sobre o fazer pintura a um nível quase filosófico. A questão das fontes, influências e citações aparece desta forma, nas pinturas da Renata, de maneira sublimada, mas não por isso menos fascinante. Na pequena pintura Nó (2009), por exemplo, estamos diante tanto da representação de algo vivido e visto pela artista, quanto de uma clara citação de Morandi: o próprio mundo, isto é, só pode ser apreendido e entendido através da representação que dele fizeram seus amigos.

Texto publicado na exposição Nouvelle Vague na Galeria Laura Marsiaj Rio de Janeiro ( março/abril 2009)

 

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