Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Renata De Bonis

Modos de atravessar o deserto

Marcelo Campos

O deserto nos conta histórias em silêncio. Diante da paisagem ou mentalmente instigado pela imaginação, o deserto existe mais forte numa visão obscura da alma. Lá encontramo-nos com nós mesmos. A ausência, condição fundamental, cria inúmeras possibilidades metafóricas. Seria a finitude ou o começo das coisas, do mundo? Uma simples linha, um simples traço podem servir de vetores, setas a seguir. Vetorizar é construir estradas, perspectivas, linhas de fuga. Assim, construiu-se a própria ilusão na arte, abrindo janelas em panos de linho. Portanto, ilusão, vontade construtiva, autorreflexão parecem indissociáveis dos modos de atravessar o deserto.
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Nos trabalhos apresentados, não apenas a constatação de uma paisagem, de vidas por um fio, da solidão solidificada. Mas, também, dos sismos, dos acontecimentos, do medo de se perder. Se só nos resta a concretude da terra e do céu, por que não atravessá-la?
Inicia-se, então, a jornada. Falamos em jornada e incluímos, inicialmente o tempo da travessia. O tempo é uma segunda natureza, dirá Norbert Elias. A viagem desestabiliza o sujeito que precisa assumir um personagem. Olhar o deserto é negociar seu estatuto de outro, de estrangeiro. Mas a arte quer, em alguns casos, negar seu estatuto de extraterritorialidade, quer chegar mais perto, mais perto, até sentir, de forma confusa, a imagem internalizada, atravessada. A tal ponto que a partir dali não sabemos se estamos projetando sobre a paisagem uma miragem, imagem interna, ou se ainda podemos ter algum grau de distanciamento para nos socorrermos, rapidamente, e em busca do alívio sacarmos a máquina fotográfica. Pronto, transformamos o deserto em suvenir, guardamo-lo.
A experiência vivida não se contentará em residir no fundo escuro invisível, inaudível do pensamento. Ela, como imagem, objeto, sensação de corpo retornará. Descrever e escrever a viagem são dois estados de alma, “entre um texto a vir e um texto advindo”, dirá Marc Auge, propondo uma antropologia da mobilidade. E a arte, aqui, se faz desta maneira, metaforizando sensações, descrevendo paisagens, oferecendo-nos fios de conexão e desalinho, lançando palavras e imagens aos ventos que a tudo fazem erodir.
Renata de Bonis nos apresenta tanto a constatação da paisagem desértica, vivida realmente por ela ao morar em Joshua Tree, Califórnia, quanto pinturas baseadas em fotos de viagem. Em sua produção, personagens se apresentam, muitas vezes, de costas para o espectador. Cria-se, assim, a pregnância de imagens, cujas paisagem passam a ser devir, desertos de atravessar. Ao mesmo tempo, a paleta reduzida da pintura, em tons terrosos, lácteos, enegrecidos dialogam com sensações essenciais. O que restara como explosão, alegria deve ser silenciado para estimular um tempo ampliado de observação. Não são imagens furtivas, roubadas bruscamente, mas antes pontos nodais, simbólicos: estradas, casas, cavalos, pássaros, personagens. Os ambientes, às vezes, guardam intensa relação cinematográfica, as cidades dos filmes de faroeste que parecem limitadas. Ao mesmo tempo, os extensos horizontes criam um caráter surrealista, deixando soltos os elementos, perdidos, individuais, sem nexos explicitados pela narrativa. Haverá sincronicidade nestas representações? Muitas pinturas nos dizem em palavras a localização dos lugares: subúrbio, vale, velho país. Mas as frases são quebradas por sensações convidando outros modos de observação: canção, som, perda, enterro. Há uma tentativa de internalizar a paisagem. Aliás, todas as paisagens só fazem sentido ao internalizamo-las.
Para atravessar o deserto Renata de Bonis nos propõe caminhos, veículos, abrigos. Com isso, vemos as casas por fora, deixando no subtexto o sentimento dual entre proteção e perda. A erosão tratara de sugar a arquitetura. Em outra configuração restaram a estrada e cavalos correndo em disparada. A angulação da imagem faz-se tão evidente que a própria imagem parece aceitar o ponto de fuga não mais como ilusão, como pretendiam os ensinos de Bruneleschi, mas como ato físico, a fuga como sobrevivência, narrativa própria, fabulística. Nos itinerários, encontramos animais, cachorros ao léu, pássaros, corvos. A pintura desta artista nos estimula a pensar em nossos próprios alter egos como espectadores. Somos missionários, funcionários coloniais, escritores viajantes, andarilhos, condições inescapáveis para quem, como no jogo desestabilizador de Velázquez, oferece as costas para a cena e olha a pintura e seus avessos.
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Em tempos de recorrentes práticas espaciais de viagem na arte, a escritura que propomos aqui excede a representação de uma tradução da experiência. Ao acreditarmos no deserto, sabemos, antes de tudo, da existência de um imenso hiato que transcende a experiência da linguagem, da viagem, mas sobrevive de maneira cintilante, transitória, cuja exposição será sempre uma troca de segredos.

 

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