Sóbrias, convulsas
Taísa Palhares
Chama a atenção, nesta série de trabalho de Ricardo Homen, que reúne cerca de seis anos de sua produção, algo que poderíamos nomear, paradoxalmente e de modo precário, de sobriedade vibrante. Vistas em conjunto, mesmo as telas de tonalidade mais variada, em que as cores parecem se manchar mutuamente com certa facilidade, revelam a persistência de uma estrutura que busca organizar a superfície mediante combinação de campos verticais e horizontais ou estabilizá-la pela utilização de figuras geométricas. Ao mesmo tempo, nas últimas pinturas de paleta escuras e reduzidas, nas quais essa organização se impõe um pouco mais afirmativamente, é impossível não notar a maneira contrariada pela qual a massa colorida cede aos limites impostos por essa ordenação.
Como as cores de matriz expressionistas, as de Ricardo Homen também não são exatamente leves e voláteis. Ao contrário, têm densidade, são fortes, e como tal impõem certa resistência àquele que deseja manipulá-las. Na história da pintura, esse tipo de cor-matéria propiciou, em grande escala, a afirmação de um gesto exacerbado, explicitador da subjetividade daquele que tentava dominá-la. No entanto, aqui as ações parecem seguir os limites mais ou menos rígidos de uma geometria, que, por vez, responde com uma ordenação afável à rebeldia dessas cores. Portanto, nem o jogo de uma razão matemática (à maneira de um abstracionismo geométrico-construtivo) nem a gestualidade sem limites de uma subjetividade autoconfiante parece aí sobreviver.
Na realidade, nesses trabalhos de Ricardo Homen há uma equação entre esses termos. A dinâmica que os move pode ser observada, por exemplo, nas telas de paleta reduzida, nas quais a superfície é quase inteiramente dominada por preto e cinza, entremeados com um amarelo encarnado e um vermelho vivo, por vezes alaranjado, e também nos desenhos. Analisando-os, temos a impressão de que os limites razoavelmente determinados entre as massas contratantes estão sob contínua pressão. A natureza convulsiva dessas cores quentes não para de vibrar; infiltra-se na massa escura, abrindo fendas que transportam energia para esses campos monótonos, como na intenção de retirá-los de sua horizontalidade pesada. Estes últimos, porém, não cedem facilmente; sua viscosidade apresenta certo estorvo que retém por um momento a total infiltração da luz.
Mas, se essa espécie de atrito – que de resto também pode ser observado nas telas mais coloridas – aponta para uma constante redefinição do espaço e das relações entre as cores, isso se dá de modo extremamente medido, ponderado, sem grandes explosões. Pois ainda que essa geometria não seja impositiva, contém algo de um controle, certamente não autoritário. Na verdade, é como se houvesse um acordo de determinação recíproca a partir do qual a pintura vai se formando.
Assim, como se ainda ouvíssemos os infindáveis diálogos do artista e sua matéria, essas superfícies parecem evidenciar o processo lento e mediado por meio do qual foram originados. Poderíamos dizer, então, que sua estrutura é temporal. E nesse sentido somos reiteradamente convidados a imaginar seus desdobramentos, a outra ordenação potencialmente presente no quadro, como se neles houvesse um movimento latente apaziguado apenas por um instante, pelo presente.
Aliás, diga-se de passagem, é de se notar a dubiedade espacial de algumas pinturas, em que linhas horizontais sugerem uma abertura, uma profundidade negra à qual somos chamados a penetrar e nos perder; entretanto, da qual somos continuamente expelidos pelo efeito vibrante da verticalidade das faixas amarelas que nos trazem de novo á superfície.
Se o desafio cotidiano é encontrar um meio-termo entre a certeza de imperativos inflexíveis e a entrega a uma espontaneidade sem limites, submetidas apenas aos mandos dos instintos e das sensações (vale dizer, dois da mesma moeda que em sua radicalidade soa como ingênuos aos ouvidos contemporâneos), de algum modo Ricardo Homen parece tê-lo encontrado. Em sua sobriedade pulsante, esses trabalhos revelam ser essa uma equação possível e indispensável, mas que necessita ser reconquistada dia a dia.