Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Thalita Hamaoui

Big time sensuality

Mario Gioia

 Um passo irreparável, individual da paulistana Thalita Hamaoui dentro do Programa de Exposições 2017 do CCSP (Centro Cultural São Paulo), sedimenta um novo e vigoroso momento em sua produção pictórica, como a afirmar que um “desvio para o vermelho” se torne a faceta mais evidente desta fase. Se o cromatismo dominante puxa para essa pulsação tão própria, outros atributos são bastante visíveis neste recorte: a minimização de soluções e dados gráficos na composição, a ambição no desenvolvimento de escalas de maior porte (o que gera interessantes formatos do tipo panorama), a habilidade no manejo do óleo entre o denso e o desfeito (ou seja, entre a materialidade e a diluição). Tudo isso mesclado e com elementos pouco dissociáveis vai construir um tom enfaticamente sensual (e elogiável) na obra recente da artista.

Nesse sentido, Lalengua – que mede 160 cm x 180 cm– sintetiza esses dias inquietos na produção de Thalita. A tela é dominada por um tipo de curso sinuoso em que um escarlate vibra com grande potência. Esse vermelho se espraia como um rio a fincar as suas águas ‘sangrentas’ numa paisagem em que parecem destacar-se montanhas – com uma tonalidade mais perto do púrpura – e uma mistura de neblina, névoas e, por que não, fumaça, como a atestar uma zona fronteiriça, de débil existência. Ao mesmo tempo, essas figuras fugidias criam uma sensação de grande envolvimento, em verde, na totalidade de elementos da composição. O azul, outrora tão presente nos quadros da artista, é importante em cada um dos terços do trabalho – mais riscado e um tanto gráfico, acima; com grande presença cromática, ao centro; e aquarelado e imiscuído ao verde, abaixo. E, como a ser quase uma assinatura que flerta com os atributos mais ligados ao desenho das obras anteriores, pequenos cubos azulados parecem se desmanchar, na porção esquerda mais acima, dentro da escala já grandiosa da obra. A geometria e a racionalidade cedem espaço ao orgânico, ao intuitivo e à agora sexy construção de Thalita.

Outras duas telas do recorte, Forcei os olhos para ver e Frita, contribuem para a leitura atual da fase da artista. Verticais, ambas medem 163 cm x 150 cm, e a última traz fricções relevantes a asseverar os resultados de hoje. Apesar de apresentar uma espécie de tetraedro, campo de onde escorrem filetes de tinta (remetendo à geometria de trabalhos anteriores), o que domina a composição é um tipo de gota, em tonalidade avermelhada, menos violenta do que nos quadros posteriores, configurando um volume de estranheza na composição. Os veios sinuosos abaixo expõem mais um traço de assentamento do que os furiosos caminhos de Lalengua faziam evidenciar. Quase como os restos de uma tempestade. Já em Forcei os olhos…, além do vermelho, o verde é uma das cores principais e faz revelar um agrupamento de pequenos volumes, tal qual uma cordilheira, com superfície e contornos que se aproximam beneficamente de uma simplificação formal modernista, criando laços com um fazer lúdico.

Outro forte momento de Um Passo Irreparável é a tela mais horizontal do conjunto. Unsound mede 170 cm x 200 cm. O que a torna interessante no conjunto é trazer o que Thalita vinha desenvolvendo, numa figuração em férteis elos com o abstrato, mas fazendo com que os elementos figurativos se afirmassem pela estranheza. E também que, por sua incompletude, deixassem ao público criar uma ideia do que fosse mais sugestivo. Neste caso, é um celeiro (ou algo similar), entintado em vermelho, mas com estruturas, ripas, portas e janelas existentes por contornos delgados, frágeis. Esses traços do desenho vão aparecer na composição em outros pontos, como a sugerir arvoredos e bosques, paisagens montanhosas longínquas e bem ao fundo, também se misturando ao próprio correr da tinta sobre o chassi. Há outros enigmáticos volumes, também em vermelho, mais à direita e se aproximando do centro da altura do quadro. Evocam uma atmosfera de um quase horror, mas que se impõe bastante lentamente e de modo mais silencioso. Algo como se o enredo de A Bruxa de Blair fosse filmado hoje por uma câmera de definição baixa, realçando aspectos nada pirotécnicos, que desprezassem tecnologias de ponta, mais perto do low fi.

Novos trabalhos, criados depois do CCSP, ratificam a pulsação mais pujante da paleta de Thalita. Os títulos seguem a vertente: I’m on fire (130 cm x 210 cm) e Old and high (130 cm x 210 cm). A sua horizontalidade, ainda maior do que no recorte da individual anterior, atesta a vontade do registro da paisagem-panorama, mas que se liga menos a retratar veristamente o que observamos e que, sim, tem mais a ver com o campo do sensorial e do corporal (pois às vezes podemos pensar em imagens médico-científicas quando vemos as pinturas, num primeiro momento). O vermelho exala força, mas também negocia sua presença de forma não harmônica com campos de azul e violeta. Parecemos testemunhas do que restou em um pós-apocalipse, num território arrasado. As figuras e os sólidos geométricos, se existem, foram soterrados. Nesse ponto, retomarmos Matisse não é errôneo. “Não me é possível copiar servilmente a natureza, a qual sou forçado a interpretar e submeter ao espírito do quadro. Sendo encontradas todas as minhas relações de tons, deve resultar um acorde cromático vivo, uma harmonia análoga à de uma composição musical.” 1 No caso de Thalita, tais acordes cromáticos, como golpes contemporâneos, talvez lembrem mais um Boulez ou um Penderecki do que sinfonias seculares menos dissonantes.

Mario Gioia, setembro de 2017

1. FOURCADE, Dominique (org.). Matisse – Escritos e Reflexões sobre Arte. Cosac Naify, São Paulo, 2007, p. 42 

 

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