Eu era dançarina
Cristiana Tejo
Reza a lenda que a escritora anarquista norte-americana Emma Goldman desafiou os cânones da causa anarquista com sua alegria de dançar livremente nos bailes, pois aos olhos de seus companheiros (homens) de luta, não convinha a uma agitadora dançar. “Quero liberdade, o direto à auto-expressão, o direito de todo mundo a coisas belas e radiantes”, escreveu Emma em sua autobiografia Living my Life (1931). A frase If I can ?t dance I don ?t want to be part of your revolution resume sua batalha pelo direito de viver seu ideal de luta e passou a ser uma espécie de lema feminista. Porém poderíamos estender essa máxima também para o enfrentamento ao eurocentrismo. No mundo ocidental há uma certa desconfiança com os povos que articulam a dança em várias instâncias do cotidiano, pois a vida do lado de cá é organizada de outra maneira.
A alegria, o gingado do corpo, a espontaneidade dos movimentos e da interação corporal são interpretados como frivolidade, falta de seriedade, sexualidade exacerbada já que sob a perspectiva europeia mente (razão) e corpo (sentimentos) devem estar apartados. A separação entre corpo (cultura) e natureza é outro binômio que estrutura o pensamento ocidental. Vindas do outro lado do Atlântico, estamos aqui para desafiar tudo isso.
I Used to be a Dancer é uma exposição manifesto de Veridiana Leite. O título pode levar muita gente a esperar explicitamente a presença da dança em suas pinturas ou mesmo da performance na primeira exposição individual da artista no Espaço NowHere, mas essa evocação existe para salientar a centralidade de seu corpo dançante no fazer pictórico e o entrelaçamento de vida e arte (sim, artista estudou vários tipos de dança desde a infância). Seu vocabulário imagético alicerça-se em suas vivências, ou seja, nas paisagens visitadas, nos lugares de pouso, nos momentos experienciados, nos objetos e seres encontrados pelo caminho. Trata-se de uma pintura migrante, fragmentada, em movimento, que relata acontecimentos, trilhas e deslocamentos do corpo da artista no mundo, mesmo que de maneira codificada, além de referir-se à fusão entre existência humana e não-humana. O ponto inaugural dessa mostra é o círculo pintado no centro da parede de fundo, um sol que é feito a partir das medidas do corpo de Veridiana, em gestos circulares repetidos, como numa coreografia. Como se sabe, o sol é o objeto mais esférico da galáxia e é a fonte principal da vida no planeta Terra, sendo adorado por inúmeras civilizações que lhe dedicaram ou dedicam rituais. Fractais, pinturas, desenhos e linhas orbitam ao redor deste sol/corpo criando uma instalação imersiva, uma oferenda da artista ao universo. A irradiação solar vai se amplificando pela galeria por ondas de cor e gatilhos narrativos, transformando-se. Há sempre elementos que vão se comunicando e se alastrando obra a obra.
Solar é uma palavra que tem múltiplas conotações e que pode definir esse conjunto aparentemente diverso de trabalhos: seja pela energia e luminosidade, ou pela expansividade e regozijo das formas, padrões e cores, ou mesmo pela acepção do verbo solar (a arte de executar um solo na música, o ponto alto de uma composição). Martha Graham afirmava que nunca se dança sozinha (há sempre ao menos um parceiro ausente), e podemos observar, portanto, que o solo feito por Veridiana Leite tem como companheiros de dança muitos seres, acontecimentos, imagens, cadências e entidades. Ela nunca deixou de dançar. A revolução será dançante ou não será.