Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Ayla Tavares

Sonantes

Aldones Nino

O trabalho de Ayla Tavares têm se desdobrado na direção de múltiplos experimentos relacionados às qualidades físicas dos artefatos e ativações ergonômicas multitemporais. Desde os registros de performances o corpo opaco e o objeto luminoso (2017), vídeo onde ela busca recuperar através da ativação corpórea, uma imagem fugidia de tempos passados. Nesse vídeo a artista persegue e desenha sombras, com interesse no tensionamento de materialidades e processos de ressignificações de espaços sagrados em pontos turísticos. Sua perseguição ao fugidio busca aproximar o material, o histórico, mutável e efêmero. Essas indagações se desdobram na série de desenhos sobre tecidos doméstico horizonte (2017), onde através de rascunhos e horizontes hipotéticos ela cria objetos tridimensionais, que cortados na proporção de tampas de mesas, evocam locais de troca e convívio. Na busca dos rastros da subjetividade de moradores em composições e escolhas dispositivas. Em notações (2018), Ayla executa uma série de registros de “objetos-ruínas”, que funcionam como uma materialização de uma gesto do improviso de uma ação, operando com composições de pedras que delimitam vagas de automóveis, como sacos de cimento dispostos na calçada, materiais sobrepostos e outros resíduos de obras e usos passageiros. Para além do desenho ela aglutina esses materiais sobrepostos, pensando características formais manuseando o desenho e a cerâmica.

Modelar a argila é gesto arcaico, ancestral, que evoca de maneira simbólica devaneios imemoriais. Modelar é ação dirigida à matéria e requer consciência do gesto, solicitando acúmulos, repetições, um acordo entre o barro e corpo. A cerâmica é uma das materialidades mais comuns encontradas em sítios arqueológicos, habitual evidências da presença e da troca humana. Uma tecnologia empregada na produção e nos ritos, um canal de contatos culturais, rastros sobre comportamentos e alimentação e cotidiano. Ao mesmo tempo em que é uma das matérias-primas mais antigas utilizadas pelo ser humano para expressar suas subjetividades e manifestar sua devoção, a cerâmica está presente no desenvolvimento de novas tecnologias no campo da medicina em implantes de alta resistência, possuindo compatibilidade orgânica para reconstruir e substituir articulações. 

Artefatos cerâmicos diversos são exibidos e protegidos em pedestais e cúpulas em museus e coleções, geralmente muito distantes geograficamente e temporalmente de seus contextos de criação, assim sendo atribuídos funções utilitárias, rituais ou “não identificadas”. Através de sua pesquisa, Ayla estabelece um léxico formal obtendo massa poética plasmada em oposição a regulação e ordenação da experiência sensória, desenvolvendo assim sua série Sonantes (2018 - 2019). Série de artefatos que solicitam atenção sensorial, evocando o real enquanto ficção, bem como as possibilidades ergonômicas e gestuais, germinadas no processo de ressignificação da matéria. O objeto revela o uso do corpo partindo do estranhamento, apresentando possibilidades ergonômicas arcaicas e universais através da ação e relação do sujeito com a obra posta em exposição. 

A poética de Ayla Tavares aproxima seus interesses do professor de arqueologia da Brown University, Yanis Hamilakis, que dedica suas pesquisas à relação entre teoria e prática no campo da arqueologia, compreendendo-a como a responsável por ter priorizado - e priorizar - apenas a visão em detrimento aos outros sentidos enquanto parâmetro para entender o mundo. O nascimento da modernidade está atrelado a transição teórica operada por Descartes, que visou estabelecer a autonomia da razão, fundando assim epistemologias objetivas e quantitativas, que distanciaram-se cada vez mais da experiência sensorial e subjetiva, fato que repercutiu de forma basilar na filosofia e nas culturas das sociedades ocidentais. Esta mentalidade valorizou a visão e a audição incorpórea e autônoma. Em seu livro, La arqueología y los sentidos (2015), Yannis nos diz que a modernidade ocidental detêm
Una preocupación recurrente por las cuestiones metodológicas, lideradas por Descartes y su Discurso del método, elimina de cualquier saber que aspire a entrar en el elenco de las ciencias cualquier reminiscencia a cualidades primarias, a lo subjetivo, y aquí la experiencia sensorial y los afectos son unas de las primeras víctimas (HAMILAKIS, 2015).

Ao se deparar com os artefatos destituídos do engajamento corporal, Ayla busca formular novas relações e gestualidades. Sonantes é uma escuta que prescinde o tato e o espaço em que se insere. A posição corporal fica evidente à medida em que a série é disposta em diferentes distâncias e alturas. Através da escuta e do engajamento corporal é possível a apreensão e compartilhamento de uma temporalidade dilatada, plasmada na matéria-barro e reverenciada na proposição onde o oco passa a ser o local de passagem e fluxo - escuta do aqui e agora o ruído externo é filtrado por essas formas variando em cada objeto. O objeto em cerâmica não permite ser queimado de forma compactada, para sua criação é imprescindível que sua moldagem seja feita sempre em torno de um vazio (sem esse oco a peça explodiria no forno). O oco, a falta, o vazio, o iato, o vago é essencial para que a forma exista. Assumindo assim uma centralidade em seus últimos trabalhos.

O trabalho de Ayla Tavares pretende investigar o ato de criar, de “esculpir” a coexistência da forma e do vazio; como um gesto impregnado de uma dimensão relacional - de compartilhamento; como uma necessidade primeira. A historiadora da arte Andressa Rocha, em seu texto Sinto as paredes do meu oco na presença do outro, afirma que; “Talvez seja essa a principal questão suscitada por ela, que convida os sujeitos a explorarem a própria estrutura da linguagem, estabelecendo uma relação com o que está dado e, sobretudo, com aquilo que falta” (ROCHA, 2019).
 
Sua realocação da hierarquia dos sentidos têm continuidade na série de desenhos presentes na exposição. Ao mesmo tempo que a artista propõe uma escuta horizontal do barro, sua série de desenhos do Oco cumprem uma visão especulativa, subvertendo a lógico do desenho científico. Funcionando como fabulações em torno do espaço interior, uma arapuca para o olhar, alertando para o limite das bordas do cientificismo. Em sua poética o vazio é posicionado enquanto condição para a existência da forma, uma proposição de exercícios de arqueologia sensorial, tensionando  temas como labor, escuta, rito e tempo. Embora possam parecer projetos, seus desenhos são executados posteriormente à moldagem e queima das peças. Apontam para uma indagação sobre a infalibilidade do olhar, ou seja uma sombra anticartesiana capaz de revelar o oco e o objeto/matéria enquanto uma rede de nexos, propondo especulações ergonômicas e epistemes desviantes. 

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