Um Diagrama Popular
Carlos Basualdo
1 Fiteiro
Um jogador de futebol cai de repente no gramado do estádio e começa a rolar sobre si mesmo, como se atravessado por uma dor dilacerante. O árbitro, que conhece essas coisas, passa pelo jogador e nem olha para ele. Quando é interpelado por outro jogador, o árbitro responde com indiferença: “não aconteceu nada, é um fiteiro…”. Em espanhol, se diria: ”hace teatro…”.
Fiteiro, em seu uso comum, é um adjetivo utilizado para qualificar aquele ou aquela que, sem chegar a mentir, empenha-se em sempre usar subterfúgios. O dicionário Michaelis nos diz que suas intenções são sempre suspeitas, o que o motiva é o desejo de enganar ou de seduzir. No primeiro caso, percebe-se um propósito de valor duvidoso, no segundo, talvez apenas o desejo inqualificável de roubar um beijo de alguém, de realizar uma conquista para não ser totalmente conquistado. Tanto num caso como noutro, o uso do termo não exclui completamente conotações pejorativas. A moral do fiteiro é questionável por causa de sua paradoxal simpatia, aparentemente espontânea. Quase se adivinha o secreto deleite de quem se torna objeto da atenção – sempre um pouco desmedida – do fiteiro. A avaliação é menos um juízo que uma reprovação.
O que seria então um ”fiteiro cultural”? A primeira impressão evocada pela frase é a de estar diante de um oxímoro. Como se pode fingir ou exagerar a cultura? Ou será este um fiteiro que, armado de cultura, propõe-se a nos seduzir? Uma coisa é evidente: qualquer que seja a utilização do termo, estaremos com certeza diante de um objeto, situação ou pessoa em que a sedução, o ardil e a cultura encontram-se indissociavelmente unidos, se diria inscritos um no outro. As possibilidades combinatórias permanecem abertas: seja a cultura que seduz e engana, seja o engano que seduz a cultura, será sempre uma relação insolúvel entre três termos interdependentes. Uma relação que nos fala da unidade secreta do artifício e da produção de sujeitos e saberes (algum outro dicionário nos lembrará que a cultura é justamente ”o patrimônio de conhecimentos que um indivíduo possui, e que contribuem para a formação de sua personalidade”) .
2. Estrutura de sobrevivência
Pelo menos desde 1961, ano em que é concluída a maquete do projeto Cães de Caça, e claramente a partir dos últimos anos desta mesma década, Hélio Oiticica concebe seu projeto artístico como indissoluvelmente ligado à criação de espaços públicos, abertos à participação de outras pessoas, artistas e não-artistas. O paradigma neste caso é o de uma arte construtiva que tem como objetivo a produção daquilo que o próprio artista na época chamava ”comunidades experimentais” . Para Oiticica, uma obra motivada por uma vontade construtiva deveria necessariamente tender à constituição de instâncias de socialização cada vez mais ricas e complexas. Em sua obra, a urgência em expandir-se fora dos espaços institucionais se dá como consequência do desejo de explorar formas de interação social que os espaços, quase por definição, parecem limitar. Trata-se, evidentemente, de um impulso animado menos por uma vontade crítica em relação a essas instituições do que pelo desejo de explorar, em sua positividade, um conjunto de possibilidades cada vez mais ricas e menos previsíveis. ”Arte ambiental” é para Oiticica aquilo que adquire uma função positiva e constituinte em relação ao contexto no qual tem lugar. Função que só se torna exequível por meio de uma aposta no acaso e na espontaneidade, como parte de uma atitude aberta ao experimental.
Cães de Caça é um labirinto construtivo, composto de cinco unidades inter-relacionadas que Oiticica denomina Penetráveis. Mas é também uma plataforma onde aconteceria o Teatro Integral do poeta Reynaldo Jardim e em cujo centro estaria o Poema Enterrado, de Ferreira Gullar. Tropicália, a instalação que Oiticica apresentaria em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, como parte da exposição Nova Objetividade Brasileira, seria integrada também por dois penetráveis (neste caso PN2 e PN3) e estruturada como uma espécie de ambíguo labirinto tropical, com seus correspondentes papagaios e plantas exóticas – tal como, segundo anotava Oiticica em seus cadernos de apontamentos, a paisagem de uma pintura de Tarsila do Amaral . Mas Oiticica também queria que Tropicália – um comentário cáustico e construtivo sobre a possibilidade de conceber alguma coisa como uma ”brasilidade”, no contexto da produção artística do país naqueles anos – se constituísse como uma plataforma para os trabalhos e as atividades de outros artistas e não-artistas. No Museu de Arte Moderna, a obra se apresentou acompanhada dos poemas-objeto de Roberta Oiticica. E durante a semana seguinte à inauguração da mostra foi palco de diversas atividades informais –”manifestações”, para usar o termo de que Oiticica gostava – das quais participaram os moradores da favela carioca de Mangueira, onde Oiticica era um assíduo visitante.
Anos depois, quando o artista já estava morando em Nova York, encontramos mais uma vez a elaboração de um projeto que permanecerá como maquete, em que uma estrutura labiríntica, de caráter construtivo, se propõe como suporte para a realização de atividades diversas que, neste caso, envolveriam o público participante, assim como um grupo de atores – que, menos do que atuar, estariam destinados a produzir ”imagens abertas” à interpretação da audiência participante. Trata-se da primeira encarnação de seus Tropicália Subterranean Projects, especificamente o projeto formado pela integração dos Penetráveis 10, 11, 12 e 13, concebido em 1971. Em uma fotomontagem do mesmo ano, concebida como parte do mesmo projeto, vêem-se quatro fotografias, dispostas em quadrícula, que parecem sintetizar visualmente as fontes e intenções do artista: uma vista de sua ambientação Babylonests montada no interior do loft que ele ocupava na Segunda Avenida – trabalho que havia apresentado anteriormente no Museu de Arte Moderna de Nova York, como parte da exposição Information, em 1970 –, o poema Subsisto, de Augusto de Campos, uma foto do cadáver do líder revolucionário brasileiro Carlos Lamarca, assassinado pela ditadura, e a imagem de uma família evidentemente sem recursos, uma jovem mãe na soleira de uma casa sem porta, rodeada de três crianças descalças. O grupo aparece emoldurado por uma construção precária, feita de madeira e barro, e de uma simplicidade patética, identificada na foto como pertencente ao Nordeste do Brasil .
3. Fiteiro cultural
No Nordeste do Brasil, a palavra ”fiteiro” adquire um significado específico, diferente daquele que lhe atribuem os dicionários da língua. Assim se denomina um tipo preciso de construção precária, uma barraca de chapa e madeira com um teto dos mesmos materiais que se estende até o exterior, servindo de abrigo para seus usuários em potencial. A função dessa estrutura é, propriamente falando, a de não tê-la, já que, como descreve Fabiana de Barros em um texto sobre seu trabalho, uma vez erguido o fiteiro e colocado estrategicamente em algum ponto-chave da cidade (neste caso ela refere-se a João Pessoa, no Estado da Paraíba), o seu dono adapta a barraca e o funcionamento às necessidades dos potenciais usuários . Fabiana de Barros relata ter encontrado um fiteiro onde se vendia gelo, outro onde se consertavam aparelhos eletrônicos e outro onde eram vendidas não só passagens de ônibus, mas também café e balas para encurtar a espera e a viagem. A tipologia dos fiteiros é ao mesmo tempo monótona e infinitamente variável, já que a cada função correspondem modificações sutis da estrutura que a tornam adequada ao uso. Em sua lógica impecável, o fiteiro é uma máquina perfeita que funciona na interface entre uma demanda potencial e sua oferta correspondente, integrado e integrando-se a um sistema econômico-construtivo-pulsional no qual os desejos impessoais se transformam em alternativas personalizadas de sobrevivência. O funcionamento do fiteiro não parte de um conjunto de elocubrações prévias nem de planos ideais a serem concretizados, pelo que qualquer apelo ambíguo ao horizonte da projetualidade utópica é excluído de imediato. O fiteiro está onde está, no centro mesmo das expectativas que detecta, capta e materializa.
Em nível construtivo, o Fiteiro Cultural de Fabiana de Barros é uma síntese das variáveis possíveis dos fiteiros, tal como a artista os havia encontrado nas ruas de João Pessoa. Sua estrutura é o produto de uma operação construtiva ao mesmo tempo oposta e paralela àquela que caracteriza os trabalhos anteriormente citados de Oiticica. Se instalações como Tropicália e os Tropicália Subterranean Projects representavam uma interpretação pessoal da arquitetura das favelas cariocas coada através do filtro de uma lógica construtiva inspirada no exemplo de Mondrian e Malevich, o Fiteiro Cultural, por sua vez, isola e potencializa o momento construtivo que desde sempre esteve presente na tipologia das barracas populares. O acentuado caráter construtivo do Fiteiro Cultural é estritamente imanente em relação ao uso popular dos fiteiros.
O Fiteiro de Fabiana é um cubo de madeira com teto inclinado, uma pequena porta lateral e quatro janelas retangulares – uma de cada lado – que se levantam perpendiculares ao restante da estrutura e que se mantêm no alto por meio de quatro vigas estrategicamente dispostas, revelando o interior do cubo.
Duas pranchas horizontais de madeira dividem em dois o espaço interno do fiteiro. Uma vez abertas as janelas dos lados correspondentes, estas pranchas podem ser deslocadas para o exterior do cubo, funcionando como bancadas. A estrutura é de uma lógica absolutamente cristalina, quase um exercício construtivo modelar. A estrutura do cubo é infinitamente adaptável: escritório, balcão de bar, mesa de trabalho, mirante e refúgio. Sua lógica construtiva é simples até o irrisório, e mesmo excluindo estruturalmente o aspecto ornamental, está, por outro lado, vinculada necessariamente ao ornamento em sua função comunicativa. O Fiteiro Cultural – ainda que o mesmo pudesse ser dito sobre qualquer fiteiro em termos gerais – é um espaço ao mesmo tempo público e publicitário, e, por isso mesmo, torna manifesta a necessária interdependência de ambas as esferas na experiência cotidiana. Significante sem significado, não há dúvida de que todo fiteiro é um dispositivo moderno, ao mesmo tempo ágora e teatro, sedução e substância.
Mas talvez seja justamente o tipo de apropriação que Fabiana de Barros faz do fiteiro, em sua estratégica falta de especificidade, o que nos permite descrevê-lo nesses termos. O seu Fiteiro Cultural, aparentemente despojado de finalidade econômica, ilumina, em primeira instância, o que poderíamos chamar de ”dispositivo fiteiro” em geral. O Fiteiro Cultural consiste na recriação de uma estrutura-fiteiro e sua disposição estratégica no contexto urbano/institucional, de maneira a atender as necessidades culturais de um hipotético público. Quando da apresentação do trabalho em São Paulo, em 2004, durante o Fórum Cultural Mundial, um dos sete fiteiros realizados foi utilizado como rádio internet, outro foi ocupado por um grupo de artistas locais, outro transformado em uma oficina de gravura. A dimensão publicitária do dispositivo-fiteiro ficou em evidência com o Fiteiro Cultural apresentado como parte da mostra Noviembre Público, na Martinez Gallery do Brooklyn, em Nova York, que funcionou como suporte para as atividades de um grupo de grafiteiros. Finalmente, em Sion, na Suíça, dois artistas transformaram um Fiteiro numa câmara escura. Em todos esses casos, os Fiteiros responderam às necessidades imateriais de artistas ou de comunidades, por meio da produção de espaços e atividades destinadas tanto a satisfazê-las quanto a estimulá-las.
A economia em que funcionavam não se baseava na necessidade de subsistência, mas na integração a um circuito de exposições e manifestações artísticas. Vem daí, portanto, a escolha do adjetivo ”cultural” para qualificar o fiteiro da artista, que marca o gesto de apropriação de Fabiana de Barros, ao mesmo tempo em que sublinha a intenção de utilizar a sua lógica construtiva para a produção de saberes imateriais.
O Fiteiro Cultural de Fabiana de Barros não resulta em uma mera individuação de uma subespécie possível de fiteiro, na singularização de um processo de agenciamento coletivo, necessariamente anônimo. Trata-se, ao contrário, de destacar – por meio da doação de um nome e sua inserção no contexto institucional da arte – a falta de especificidade característica de todo fiteiro em seu caráter produtivo. Todo fiteiro, parece sugerir-nos Fabiana, é desde sempre ”cultural”, está envolvido em um processo de produção que transforma desejos em ferramentas de sobrevivência, saberes em materiais e vice-versa. Todo fiteiro é um aparato de tradução que opera entre a dimensão coletiva e a individual, envolvido na produção de uma economia comunicacional. Pequena empresa autônoma e experimental, todo fiteiro é um cruzamento de caminhos abertos por aquele ou aqueles que o constroem e pela comunidade que se constitui em seu entorno.
Mas o Fiteiro Cultural em particular – como também é o caso de qualquer fiteiro em geral – deixaria de funcionar se não tivesse a capacidade de nos seduzir. Para ativar-se e produzir efeitos, deve ser capaz de atrair a esse substrato coletivo, destinado a sustentar a atividade do fiteiro. Seduzir para singularizar e singularizar-se. Enganar, talvez, com o propósito de produzir o espaço de publicidade necessário para seu funcionamento. Será que em última instância o fiteiro nos ensina que a sedução e a produção de saberes e de sujeitos não são coisas que se opõem, mas que se complementam necessariamente na composição de um espaço coletivo? Um espaço em que cada um é capaz de encontrar ”os conhecimentos que contribuem para a formação de sua personalidade”, investidos de desejo e, sobretudo, de vontade de existência. Fiteiro como diagrama efetivo de qualquer comunidade.
*fi.tei.ro adj. (fita1 + eiro) 1 Que, ou aquele que faz fitas, exagera, engana. 2 Quem, ou o que finge sentimentos que não tem; mentiroso, namorador. [Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa
[1] Dizionario Italiano I Garzantini, Garzanti Linguistica, 2000.
[2] Archivo HO.
[3] Archivo HO.
[4] Hélio Oiticica, catálogo da mostra retrospectiva, Witte de With Center for Contemporary Art, Rotterdam, 1992. Pág. 148.
[5] Fabiana de Barros, ”Fiteiro Cultural-Kiosque à Culture-Culture Kiosk”.