Cartografias da incerteza - sobre os bordados de Milena Oliveira
Alejandra Muñoz
Costuras, tecidos e bordados resultam de três operações com fios e fibras que, de modo artesanal ou manufaturado, acompanham a história da arte e vêm sendo recorrentes na produção contemporânea. A costura, mediante agulha e linha, pressupõe a junção de partes diferentes de pano, couro, casca ou outros materiais. A tecelagem é o entrelaçamento de fios ou fibras formando uma trama ou tecido. O bordado, que também utiliza agulha e fios, constrói com linhas uma forma sobre um tecido ou outro suporte material. Qualquer uma dessas técnicas oferece um amplo espectro de possibilidades artísticas.
Milena Oliveira começou sua pesquisa artística em 2010, conjugando desenho, cerâmica e fotografia. Da interlocução entre matrizes gráficas, a apropriação de objetos e registros familiares, a artista foi aprimorando uma grafia com agulhas na transferência de imagens para suportes de papel e argila. Nos trabalhos mais recentes, realizados entre 2020 e 2021, vem desenvolvendo uma escrita do cotidiano através de bordados de pequenas dimensões com breves inserções de aquarela que reforçam um sentido de transparência, delicadeza e fragilidade em um contexto ao mesmo tempo pessoal e universal.
Cabe uma breve digressão da trajetória poética de Milena para apreciar diferentes aspectos de sua produção recente. Na primeira série de trabalhos, Relicários (2010-2011), em que explorava a fusão material de objetos pessoais (alguns deles orgânicos) com o modelado em argila, a artista definiu uma peça que denominou "objeto-personagem" – ela era como uma pílula, sem braços, com três pernas e um invólucro em seu corpo. Era uma nova realidade que, quimicamente, guardava uma lembrança da origem, mas visual e materialmente não podia retornar aos elementos constituintes antes do fogo. Havia uma consciência de materialidade destruída em favor da construção de algo novo, que se alimentava de uma memória tangível, porém, queimada e desintegrada.
Em seguida, a pesquisa da artista avançou para objetos oriundos de um processo duplo: por um lado, a divisão física do objeto-personagem em dois objetos menores, e, por outro, uma ação matricial de gravar as superfícies por meio do esgrafitado de imagens existentes e da transposição de fotografias de família. Apesar dos nomes sugestivos das obras, o processo novamente conjugava, de modo ambíguo, as ações de acrisolar e remediar as memórias. Na série seguinte, de escritas em papel japonês, a imagem se diluía em palavras ilegíveis que resgatavam lembranças através do desenho, instaurando uma nova narrativa não verbal.
Na retomada do suporte cerâmico de modo estilizado, Milena voltou a quebrar o objeto-personagem para configurar nichos menores, isto é, a ideia do relicário, então, como fragmento de uma casca maior. Enquanto a artista continuava desenvolvendo escritas ilegíveis e processos de fusão de imagens familiares, em uma introspeção que não deixava frestas para nenhuma relação invasiva de intimidade por parte do observador, a persistência da forma do objeto-personagem tornava-se cada vez mais instável. Finalmente, na fotoperformance Abrir pedras (2017), Milena fecha o ciclo com a destruição do objeto-personagem.
Todo o trabalho da artista apresenta um leitmotiv claro de memória familiar. Entretanto, o processo é menos de perpetuação de lembranças ou de construção de narrativas de culto e mais de iconoclastia da dor, de afirmação da fugacidade da vivência sem qualquer mitificação do passado. Milena assume a difícil tarefa de falar da memória sem fazer um inventário anedótico de acontecimentos. Usa a imagem desmontando qualquer narrativa das circunstâncias dos resquícios da vida.
Desde março de 2020, como tanta gente durante a pandemia, a artista começou a explorar o universo íntimo de sua casa. No isolamento social e ante a impossibilidade de praticar a cerâmica e os processos de laboratório inerentes aos trabalhos anteriores, Milena deu início a uma nova fase de expressão artística. Após processo demorado e complexo de mais de uma década de gestação e destruição daquele objeto-personagem, a artista passou a trabalhar com bordados e deslocou o âmbito das lembranças familiares para o da vivência de um cotidiano confinado.
Os últimos números e Risco (ambos de 2021) são trabalhos síncronos, uma instalação e uma performance emergentes do desespero no auge das estatísticas trágicas da covid. Ambas as obras poderiam ser uma homenagem aos mortos pelo vírus, porém, em sua delicadeza visual, afirmam-se como denúncia necessária da inoperância que pautou a gestão da pandemia no Brasil.
Os trabalhos Na corrente, Não posso plantar o passado e Tempo Sonho Benzer (2021) articulam uma presença que se aproxima do protagonismo do outrora objeto-personagem, agora deslocado para a cama, protegida por diáfanos dosséis. Ritmos de linhas revelam a contagem de um tempo incerto, que remete às marcas primevas rupestres e se confunde com os dias assinalados nos muros das prisões – na pandemia, de fato, todos nos tornamos prisioneiros.
O tema do leito continua em Decifrável (2021), que pode ser lido como primeiro ensaio para o repertório de Uma cama por dia (2020), saga que parte dessa peça de mobiliário como estrutura incompleta até constituir uma espessura de registro diário da cama. De novo, evoca-se o processo de fragmentação do objeto-personagem presente nas séries anteriores à pandemia: nas obras De vagar e A vida é boa (2021), a cama passa a ser desmembrada em seus elementos. Apenas em O que significa sonhar com cachorro? (2021) aparece explicitamente a referência à dimensão onírica como elemento intangível, porém, fundamental, do âmbito do leito.
Em Deitar sobre o afogo (2020), a artista explicita que busca "processar e trazer sentido ao isolamento, aos dias e ao tempo, ao medo de adoecer, do invisível, de desacelerar a vida e olhar para si e para a morte". Assim como nos outros bordados, a sutileza dos detalhes é eloquente nas texturas minuciosas de pequenos pontos, na inserção cirúrgica de algumas cores e nos ritmos das linhas definidoras dos desenhos. Nesta peça, o desalinho proposital dos pontos é um recurso para falar da instabilidade do presente e da angústia do encerramento. Tais ideias também perpassam as incompletudes dos objetos das séries Espera 1 e 2 (2020-2021) e Resguardo #1, #2 e #3 (2020)na peça Grades, em que, possivelmente, lê-se uma retomada gráfica das linhas de contagem do tempo, agora formalizadas como objetos de interdição da liberdade.
As obras A antípoda (2021) e Minhas janelas (2020) podem ser apreciadas como exercícios de alteridade, de fuga e, até, de expectativa. São referências concretas a algo que está ora em situação diametralmente oposta ao chão que pisamos, ora no exterior do recinto da casa. As figuras, humanas ou de esquadrias, ambiguamente podem aludir tanto à dualidade da artista e de seu alter ego, quanto ao outro que coabita.
Nas palavras da artista: "Elejo a cama, a casa, a rotina, os sonhos e objetos que nos relacionam a situações da memória recente, referindo-me aos obstáculos enfrentados na quarentena. Essa experiência individual com a separação da família, a privação social, os enfrentamentos emocionais junto à nova configuração de vida, o distanciamento, o pouco contato físico, bem como a nova rotina de estar restrito à casa em uma aparente segurança, de modo a ressignificar tais vivências".
Assim, a dimensão do banal, do gesto mínimo da sobrevivência e da observação paciente de um tempo sem heroísmos dos bordados de Milena adquire uma potência cotejável a poéticas tão díspares como a melancolia minimalista de Morandi, as tessituras imbricadas de Bourgeois ou os enigmas solitários de Leonilson. O trabalho da artista exprime a suspensão do presente por meio de objetos reconhecíveis em qualquer âmbito doméstico, contém recorrências em torno da finitude e da liberdade, da relação com o outro e consigo mesmo, da intimidade paciente e da espera reticente. Talvez todos tenhamos nos tornado objetos-personagens estraçalhados, e os bordados de Milena devêm as escutas dos silêncios acumulados neste tempo demorado, da essência introspectiva fragilizada e dos territórios afetivos interrompidos em todos nós.