O Tempo no Verso do Avesso
Felipe Barros de Brito
O poeta Manoel de Barros diria, em O Livro Sobre Nada, que “há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. O surgimento da poesia frequentemente confunde-se com a origem da própria linguagem, e, para facilitar a sua definição, é posta como um “estado mental”. Na antiguidade, era intimamente ligada à memória, utilizada para preservar o conhecimento a partir de palavras. Do encontro da poesia com a escrita, desaguou o poema.
A poesia de Milena Oliveira materializa-se não só em escrita, mas em traços, linhas de costura, pinturas, esculturas e fotografias. O desenho é a viga mestra dos seus trabalhos, onde, a partir dele, constrói o íntimo e o vulnerável. Fixando memórias em papel, tecido e tela, esquiva-se da névoa do esquecimento e torna perene a sua trajetória. Com o lápis, esboça, mas seu instrumento de trabalho primordial é a agulha.
Tradição geracional em sua família, o bordado e a costura, técnicas ainda muito relacionadas ao ambiente doméstico, foi desenvolvido quando ainda era muito jovem, presenciando sua avó e mãe envoltas de fios e tessituras. Hoje, ressignifica o ofício, transportando-o do lar para as galerias de arte. Costurar é ir para além da superfície; é integrar, enraizar, aterrar, lembrar. Milena Oliveira utiliza-se da prática artística, por meio de bordados e tintas, para expurgar sentimentos, ao passo que os materializa.
A presença invisível do tempo impõe-se em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos, ou melhor, em secagem de tinta, sutura, pensamentos, experiências e traumas. Seus trabalhos mais recentes, aqui apresentados, são como cartas do confinamento, onde, através de pigmentos e fios, delineia a sua narrativa pessoal sobre a sua vivência no período da pandemia — e, mesmo isolada, consegue expressar com exatidão os sentimentos de um coletivo social. A representação de objetos como camas e mosquiteiros traduzem sensações de conforto, intimidade e proteção, oferecidos pela imposição contextual do isolamento. O mosquiteiro, em particular, é utilizado em nosso momento mais vulnerável: o sono. Como proteção, o tecido é posto como um lugar de afeto, calmaria e confiança, protegendo-a da doença, das notícias e números — como uma homenagem à sua mãe.
Para uma boa bordadeira, o avesso precisa ser tão bom como a frente – e é neste lugar que Milena Oliveira se encontra. Sua maestria técnica alinha-se com a poética, forjando cenários em uma dança entre a costura e a aquarela. A multiplicidade de sentidos presentes no nada de Manoel de Barros está presente nos objetos comuns, domésticos, aqui representados. As telas e bordados são como testemunhos de períodos do tempo – seja no passado, presente ou vislumbres do futuro. Verdadeiras materializações do seu estado de poesia.