Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Pedro David

Cartografias Contemporâneas

Alejandro Castellote

Na atualidade, não apenas tem triunfado o modelo urbano europeu-protestante, também tem se instaurado um paradigma de representação ? especialmente na fotografia contemporânea ? que aspira à objetividade e, por consequência, a sustentar a bandeira do desaparecimento da presença subjetiva do autor, eliminando, nas palavras do casal Becher, "todo o superficial, narrativo, emocional, vegetativo e efêmero". A arte contemporânea, em geral, e a fotografia, em particular, têm se concentrado ultimamente no debate da representação, tanto em sua acepção política, como identitária, social e cultural, deixando, em segundo plano, a experiência sensível. A vontade de representar, à maneira da escola alemã, estas paisagens periféricas em que o limite entre uma percepção do lugar como tal e a do lugar percebido pelo filtro da história é quase imperceptível, desarticula a continuidade da experiência e da percepção subjetiva, mas facilita a incrustação de diferentes discursos, o que torna mais apetecível para os curadores esse tipo de representação.

A importância que se outorga a esse modelo de representação na arte contemporânea tem um efeito perverso sobre aquelas aproximações às mesmas temáticas em que prevalecem os aspectos subjetivos de nossa percepção. O mito da racionalidade como paradigma da objetividade está, sem dúvida, em questão: nossa cognição, por sua necessidade biológica de comprimir algoritmicamente os fenômenos, é estruturalmente diferente da realidade. E a fotografia, como instrumento de registro, é apenas uma tautologia incompleta, incapaz de situar-se na verdadeira escala do real, que não se baseia exclusivamente em parâmetros científicos e racionais.

Pedro David alinha-se com uma posição situada nas antípodas da obsessão pela objetividade. A descrição da práxis tipológica é grata ao pensamento protestante, mas, como sustenta John Berger, "as palavras nunca abrem por completo a função da vista. A contemplação tem uma primeira fase admirativa que torna-se introspectiva uma vez que completa-se a visão do cenário. Nunca vemos apenas uma coisa, sempre vemos a relação entre as coisas e nós mesmos".

A modernidade tem se caracterizado pela construção de uma lógica de racionalidade baseada na hegemonia da visão. Visão e saber aparecem como sinônimos. A fotografia, como afirma Juan Antônio Molina em seu ensaio "A Fotografia com Objeto Débil", vem a oferecer esse espaço mítico onde encontraria sustentação uma visão sólida da realidade. Mas a hegemonia da visão já não é praticável desde o atual status de debilidade e ambiguidade que a fotografia ostenta. A paisagem, a partir dessa ótica, é um ato falido, uma constatação de sua impotência, já que as imagens falseiam as dimensões, modificam a cor ?reduzem-na a uma escala cromática de cinzas ?, ocultam as emoções, ou, simplesmente, as banalizam. Não é estranho que alguns autores ? e Pedro David é um deles ? tendam a concentrar-se em pequenos fragmentos, suscetíveis a atuar como metonímias do todo. As tentativas de acometer uma representação grandiosa da natureza, ver o caso desse honesto artesão da fotografia que foi Ansel Adams, terminam convertidas, com o passar do tempo, em meros postais com um sutil aroma novecentista. De pouco serve toda a energia despendida pelos Estados Unidos para buscar-lhe um lugar no olimpo dos grandes mestres da fotografia. Em todo caso, teríamos de dirigir nosso olhar para outro norte-americano, Mark Klett, para obter uma aproximação contemporânea, crítica e inteligente aos grandiosos parques naturais de seu país durante o século XIX; busca os rastros humanos na paisagem atual e os inclui em suas fotografias com dimensões proporcionais à escassíssima entidade que o ser humano tem tido na configuração de suas formas.

Uma parte da obra de Pedro David tem uma clara tendência à cartografia e à tipologia, por isso não é estranho que se sirva da prática da fotografia para configurar sua maneira de ver o mundo. Suas séries Desenhos, Coisas que Caem do Céu, Planta, Aluga-se ou Última Morada são boa mostra disso; mas simultaneamente vem desenvolvendo outros trabalhos que aprofundam seu afã de compreender a relacão de sua biografia com a terra que habita. O horizonte utópico a que aspiravam os cartógrafos de Borges não apenas é inalcançável em termos algorítmicos, também é deficiente no que se refere à experiência individual. Daí a importância que adquire esse projeto polifônico intitulado Paisagem Submersa, realizado entre 2002 e 2008 por João Castilho, Pedro Motta e o próprio Pedro David, no nordeste do estado de Minas Gerais. O trabalho é centrado nos sete municípios que foram parcialmente inundados para formar o lago da central Hidrelétrica de Irapé, construída no leito do rio Jequitinhonha. Os territórios destas comunidades situadas às margens do rio foram atingidos, e seus habitantes tiveram de mover-se para outras regiões.

Durante as viagens realizadas para Paisagem Submersa, Pedro David começou a desenvolver a série Rota: Raiz, um documentário imaginário sobre a vida no sertão contemporâneo e sua relação pessoal com este universo, realizado com a colaboração de seu "mestre, mentor e amigo", Rui Cezar dos Santos. Durante cinco anos, viajou pelos vales do Jequitinhonha, Mucuri e São Francisco, localizados nas regiões menos desenvolvidas de Minas Gerais, que ainda conservam algumas tradições culturais já desaparecidas em outros lugares. Pedro David procurou dar corpo a imagens que existiam apenas em seu pensamento. Imagens latentes, criadas durante sua infância a partir de inúmeras e extraordinárias histórias que seus pais lhe haviam contado sobre suas viagens por essas regiões. Rui Cezar dos Santos afirma que, nesta série, Pedro David "tece com suas imagens uma rede sem fissuras, similar à do realismo mágico de Juan Rulfo". Para Santos, na viagem de Pedro pelo sertão mineiro afloram os ecos dessa viagem iniciática a Comala, que Rulfo narra magistralmente em Pedro Páramo. O olhar sutilmente alucinado que emerge dessas fotografias é o que resulta ao confrontarem-se os sonhos com uma realidade que ainda resiste a passar para o outro lado do espelho.

A experiência destas séries, cujos cenários diferem substancialmente dos urbanos, continua em outra viagem de corantes oníricos que leva o título de Homem Pedra, contemplado, em 2010, com o Prêmio União Latina ? Martín Chambi de Fotografia. De novo, uma imersão nesse território mítico ? "ali envelhece o vento" ? que é o Sertão; um território que o autor descreve como "uma panela em fogo brando, um dispositivo cósmico, que deixa entrever as possibilidades ficcionais da fotografia". O trabalho é ´´uma reflexão sobre a vida em outro tempo". Sobre o hábito e a necessidade de observar as condições naturais do meio ambiente, de viver em contato com a natureza e planejar a vida em estreita relação com ela. Uma atitude cardeal na existência da gente do Sertão, amplamente trabalhada na obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa. É que a Natureza intervém, às vezes, com tanta majestade que apenas alguns poetas e alguns cientistas se atrevem a descrever com palavras.

A necessidade de recuperar a relação do homem com a natureza gravita sobre todos estes trabalhos que Pedro David tem desenvolvido desde 1997. Sua obra vem amadurecendo conforme se aprofunda nas raízes de sua terra (a cabeça pensa onde os pés pisam, diz um ditado brasileiro). A sua é uma maneira de olhar que, como dizia o fotógrafo italiano Luigi Ghirri, quer determinar um sentido de pertencimento pelo mundo. E nessa viagem interior também tem crescido seu posicionamento crítico a respeito da devastação do meio ambiente. Traduzir em imagens esse mal-estar não é apenas uma questão estética, é sobre tudo uma questão ética. Por isso, David introduz frequentemente códigos públicos de conhecimento, (o que Norman Bryson chama "a orquestração coletiva da cultura") que lhe permitem eludir uma representação romântica e sublimada da paisagem. Prova disso é a presença na série O Jardim de edifícios e pequenas construções em estado ruinoso. A representação da ruína leva quase sempre um posicionamento político; um exemplo eloquente é a obra do cubano Carlos Garaicoa, que outorga um papel duplo aos depauperados edifícios de sua cidade, Havana; em seu trabalho, as ruínas dos edifícios funcionam como alegorias de um monumento ? edifícios transmutados em esculturas efêmeras ? e como metarrelato para falar do fracasso dos programas arquitetônicos e sociais desenvolvidos durante décadas na capital de Cuba. Pedro David trata as construções decrépitas como se fossem esculturas totêmicas geradas espontaneamente. Explorando assim seu potencial metafórico e salientando "a dicotomia entre a realidade do espaço público e o corpo simbólico e social. Sua mimesis com a escultura procede sem dúvida de sua essencialização, do caráter totêmico que adquire ao isolá-la, ao focalizar nela o nosso olhar. Objetualizar o real para deslizá-lo ao simbólico". Como diz Alberto Ruiz de Samaniego, "a ruína possui um poder de sugestão e de impulsão que transita por determinações tanto conscientes como inconscientes, o que o faz alcançar âmbitos de expressividade e de projeção sensorial ? e, diríamos, pulsional".

Outra das capas semânticas aderidas a O Jardim é a onipresença da terra vermelha em quase todas as imagens da série. Terra vermelha que é uma metonímia da presença da natureza sobre nossos pés. A cor vermelha acrescenta a si própria um código cultural que a vincula à violência, ao sofrimento do ser humano e à paixão. A pintura barroca, tanto a europeia como a colonial, abundava no uso do vermelho como elemento simbólico. Um dos grandes artistas contemporâneos, Miguel Rio Branco, também inclui o vermelho na mesma chave metafórica e simbólica; serve-se da estratégia antropofágica para tornar visível o rastro de sua formação pictórica e de sua educação católica e gerar imagens ? frequentemente dispostas como uma espécie de retábulos barrocos contemporâneos ? que transcendem a experiência individual ou local para remeter-nos à condição humana universal.

A proposta visual que Pedro David faz, a partir de seu entorno mais próximo, não se limita a denúncias peremptórias sobre a perversão de nossa relação com a natureza; em certo sentido, critica o fracasso do projeto vital do homem moderno. Agora que desde a universidade se está voltando o olhar sobre a experiência sensível que obtém seu contexto na história da cultura, não parece selvagem incluir a arte como mais um dos elementos necessários para se aprofundar nesse contexto. Desta perspectiva, cobram sentido as menções que Pedro David faz, de forma explícita ou velada, à land-art, às ações de Hamish Fulton e ainda ao objet trouvé dos surrealistas. A natureza fornece amostras espontâneas que se aparentam com as ações duplicativas que realizavam Richard Long ou Robert Smithson sobre a paisagem. Estes e outros artistas adscritos ao land-art têm centrado seu olhar sobre a composição da terra e sua ordem natural, respeitando-a ou alterando-a a fim de chamar a atenção sobre os problemas derivados da invasão e exploração sem escrúpulos do meio natural; "uma alienação destruidora que representa não apenas a perda de um enorme patrimônio necessário para o desenvolvimento normal da vida no planeta, mas também uma divisão da própria identidade humana, pois não devemos esquecer que a relação entre esta e a paisagem, e a maneira como a molda, não se estabelece originariamente em termos de disjunção, senão de conjunção".

Assim mesmo, a documentação das caminhadas que compõem a obra de Hamish Fulton emite na mesma frequência de onda que a que Pedro David instala para percorrer seu entorno e sua própria biografia mediante fragmentos de percepções fugazes ou rastros aleatórios de suas experiências. E ambos devem, consciente ou inconscientemente, crédito histórico à poesia de Thoreau. A viagem de Pedro David pelo Jardim nunca aspirou às soberbas dimensões dos Cartógrafos de Borges, mas bem tem percorrido alguns pedaços deste Mapa; mas é certo que essa travessia imaginária em que o tempo orbita sem cessar entre o passado e o presente, como diz João Guimarães Rosa, "durou um instantezinho enorme".

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