Do ferro ao afeto
Felipe Scovino
A primeira vez que tomei contato com a série Balanços de Raul Mourão foi em setembro do ano passado durante os ensaios da Intrépida Trupe para o espetáculo Projeto: Coleções. Mourão estava começando a experimentar os primeiros trabalhos dessa série (que apesar dele relacioná-las como estudo ou experiência de sucessões, como se cada escultura fosse o projeto ou um esquema para algo “melhor” ou maior, entendia que exatamente esse caráter desafiador, inconstante e molecular da escultura como forma transitória tinha possibilitado ao artista um marco investigativo de alta potência para o seu trabalho) justamente tendo os bailarinos da Companhia como laboratório. Ao ver um deles montando as grades umas sobre a outras, intercalando espaços, comprometendo os vazados das peças de Mourão e como uma espécie de corpo-borracha se encaixando e movendo de forma fácil naquela estrutura que para mim significava rigidez e formalismo, tive a certeza (e acredito que assim como Mourão) que o que se consistia como silêncio (ainda que o ferro transmitisse uma ideia de agressividade por sua composição material) transformou-se em corpo, afeto e linguagem.
Foi impressionante perceber não apenas uma nova possibilidade para uma experiência cinética nas artes, mas fundamentalmente a ação em seu estado bruto transformando algo com o qual sempre identificamos como inerte. Portanto, uma ação que, rompendo com a inércia da forma-matriz, projeta a escultura para o espaço. Pela ação do gesto sobre a matéria, essas esculturas se mantêm todas iguais, só que absolutamente diferentes entre si. Cada uma é una, sendo fundamentalmente todas. No deslocamento da contemplação para a ação, Balanços promove uma espécie de suspensão do sujeito; seu ponto de partida é o acionamento do mecanismo cinético pelo toque do espectador. No ritmo coordenado de seu movimento, uma fração de tempo (que não corresponde ao tempo cronológico, mas se coloca como espaço/tempo experimental de liberdade) impõe o que poderíamos qualificar como sequestro do espectador: como se naquela exata condição espacial e temporal, a obra anunciasse que a arte não se reduz ao objeto que resulta de sua prática, mas ela é essa prática como um todo.
Encontrando os minimalistas e ao mesmo tempo impondo um desvio para o terreno da escultura, o lugar dos Balanços não é crucial para Mourão. Eles têm compromisso com o diálogo; são lúdicos ao mesmo tempo em que impõem a constante do afeto. Se nos minimalistas, a produção tende a ser fechada em si mesma, impossibilitando um diálogo com o público, a não ser quando se coloca como ameaça ou obstrução, Balanços se projeta como território de passagens, incorporando tudo a sua volta. São esculturas-pele, na melhor tradição que convencionou chamar os neoconcretos de artistas dotados de uma geometria sensível. Trabalhando com o ferro, Mourão expõe esse corpo-escultura ao tempo. A decomposição dessa matéria transmite ao trabalho do artista uma passagem quase que invisível: ao se decompor, o ferro nos chama a atenção para o nosso próprio estado precário de existência. São essas ferrugens/pele envelhecida/rugas que dão aos Balanços, mais uma vez, um caráter permanente de ligação com o mundo. Mourão aplica a mobilidade a algo que pareceria estático. Balanços gera ambiguidade: como obra isolada e estática, emana outra possibilidade de existência e compreensão de seu estado enquanto força poética (o repouso de suas pesadas estruturas em perfeito equilíbrio e a diversidade e qualidade com que trata a relação com o tempo mesma numa falta de ação estão entre as contribuições dessa série para um pensamento recente sobre o lugar da escultura no Brasil), ao mesmo tempo em que anuncia combinações e deslocamentos, articulando unidades provisórias que estão na esfera da relatividade.
Voltando ao encontro entre os bailarinos e as obras de Mourão, foi marcante presenciar que enquanto nas esculturas neoconcretas a ausência de massa ou vazio é preenchido pelo ar, em Mourão a falta é dado essencial para o diálogo do corpo com a obra. Na qualidade de se configurar também como uma estrutura quase antropomórfica, o movimento pendular dessa série nos instiga a pensar que seu habitat passa a ser inclusive essa doação de mundo que o contato humano carrega em cada gesto ativador desse pêndulo. No embate entre escultura e homem, os cortes e vazios dos Balanços possibilitaram múltiplos contatos e apropriações pelos bailarinos, conferindo às peças uma sensualidade (em contraposição a própria sobriedade do ferro) e assumindo o corte como um traço estrutural, e não um adereço. Um corte certeiro, sem arrependimentos, mas múltiplo em sua capacidade de geração de sentidos e possibilidades fenomenológicas. Um corte, seco e sólido, que não deixa de possuir, no entanto, uma sensualidade, “ou pelo menos uma disposição de diálogo mais efetivo e afetivo com o mundo.”
Nessa exposição estamos diante de uma potência que apenas no ateliê do artista tomamos conhecimento: a reunião de vários trabalhos que se conectam e dialogam não mais em territórios autônomos mas em um campo ampliado que remete a uma sinfonia de formas, vibrações e tempos. A melhor notícia é que estamos apenas no início: Balanços torna-se diferente exatamente por ser repetitiva.