Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Raul Mourão

Raul Mourão, a gentil arte de burlar

Paulo Herkenhoff

Um conjunto heterogêneo de obras de Raul Mourão enlaça o olhar com ironia. Mourão opera com a subtração da regra e formas gentis de sua transgressão. O artista desestabiliza. Tudo será objeto de ironia, do poder ao medo. Cada obra parece querer atuar como um aparelho para a prática dessa perversidade. Em seu repertório, existe o confronto com a ordem jurídica, leis da Física, estruturas comportamentais, normas e mores, cânone estético, regras do jogo, grade, malha ou a grid cubista. Para a transgressão, o artista aborda a física da maciez, a elasticidade, a geometria do medo, o desenho sólido, a cultura da sobrevivência nas ruas do Rio de Janeiro e a política da forma.

 

Desenhos em longa manus

Malgrado o domínio da linguagem do desenho, Mourão realizou algumas obras que são textos executados por um pintor-letrista (1997). Na expressão jurídica, como no crime em que se utiliza da ação física de terceiros, o artista usa uma longa manus para o desenho. A vontade matérica, modo bachelardiano de organizar o mundo, está transferida a um terceiro, anônimo e alienado na divisão do trabalho na produção artística:

“Tenho dois filhos e ninguém sabe.

Ninguém conhece.

(…) Poesia come tudo.

Aguardando sol para lavagem”

Alguns são uma escritura da suspeita. Já não é do artista que se suspeita (uma hipotética falta de virtuosismo resolvida com o convite a um outro para operar a artesania), mas da agenda de significados: os filhos mantidos em segredo, a devoração pela poética, a lavagem. Há um teor de desregulamentação infiltrado no desenho.

 

90 Minutos de Escultura

Raul Mourão produziu esculturas e objetos para um espaço temporal determinado: os 90 minutos do tempo regulamentar de um jogo de futebol. Em 1863, a Football Association estabeleceu as regras que definem o espaço do campo, os tiros de meta e pênalti, o impedimento e a proibição de toque da mão na bola, as exceções. A regra e a disciplina do jogo subvertem-se na investigação sensível. É nesse campo com duração de 90 minutos que Mourão estabelece uma poética do espaço em que os elementos da ordem do futebol são permanentemente submetidos a uma desregulamentação.

Cartões (2000) são dois planos (placas retangulares em acrílico sólido) em amarelo ou vermelho, numa caixa. Os planos monocromáticos formam um jogo concretista. O lúdico se aproxima de alguns objetos com partes móveis de Abraham Palatnik, Osmar Dillon ou Paulo Roberto Leal na tradição construtiva brasileira. Vermelho e amarelo, com a solaridade dos acordes cromáticos de Hélio Oiticica, são as cores protocolares da advertência e da expulsão de campo num jogo de futebol. Na caixa, os movimentos planares da cor teimam em não ajustar os “cartões” de cor, mantendo dada indisciplina geométrica, uma instabilidade e certo descontrole. É o espectador que se depara com a hipótese da sanção, símbolos de censura e castração, do domínio da regra.

Nesse jogo entre dimensões, o desenho de Mourão pode ser um corpo sólido. Como certo desenho linear de Franz Weissmann no início da década de 1950, que davam corporeidade de escultura à imagem virtual dos sólidos, Mourão constituiu uma geometria de sólidos do futebol. A grande área (2001) conforma, em tubo de aço, um desenho do campo do jogo. Outra grande escultura tem as mesmas dimensões da situação do pênalti, entre a marca e os extremos da trave. Há duas linhas oblíquas à linha de meta a 16,5 m. de distância. O desenho final será dado pelo pé, pelo chute. A bola descreve o desenho. A estrutura única e contínua que põe a nu a unidade entre os opositores. Trata-se de um aparelho para demarcar tensão: em torno da bola, goleiro e cobrador do pênalti são o Um antagônico, frente a frente. Mourão expõe a incontornável oposição entre Dois que se fundem e se dividem na atração dos opostos. A bola-olho é, agora, cega. Vai sem ver. Ver não será enxergar, mas perceber para além dos cinco sentidos e calcular com exatidão.

Defesa ou ataque se relacionam com um exagero absurdo. “Meio gol” (Esporte, 1994) é uma hipótese. Cento e trinta e quatro (134) é número para o estranhamento. Refere-se ao “quase”. “Meio gol é a expressão para quando o jogador dá um passe ao seu companheiro que é quase um gol”, diz Mourão. Essa é a altura (134 cm) de uma escultura correspondente à metade da altura total das traves (268 cm). Na obra de Mourão, a largura mantém-se idêntica: 768 cm. O desenho do campo de futebol de Mourão não se constrói por relações perturbadoras entre arquitetura e anamorfose, como Cildo Meireles introduziu na arte brasileira, mas pelo estranhamento e pelo humor.

No espaço da grama, um sólido não rola. Uma bola em ferro fundido está no campo (Bolas, 1999). Pesa dezenas de quilos (bem mais que os 410 a 450 gramas previstos pela FIFA). Está ali para confundir o olhar diante do inapreensível pela retina: o peso. Aqui, a referência histórica é Eurekablindhotland de Cildo Meireles, com suas bolas com forma e material idênticos, mas pesos diversos. No entanto, a diferença crucial é a dinâmica. Enquanto os sons na instalação de Meireles são índices de leitura de velocidade, na escultura de Mourão, a esfera é pura imobilidade. Isto é, neste caso, futebol não é bola rolando. A invisível diferença transforma a bola em olho, com sua dupla falácia: a ilusão de ótica do espectador e as trajetórias imprevisíveis da bola que não rola. Pede-se um olho em estado de magia, pois a arte permanece entre o Logos (a razão cartesiana, inclusive a técnica do esporte e as regras da Football Association) e Sobrenatural de Almeida, que é o nome do Imponderável encontrado por Nelson Rodrigues. Digamos que em algum momento o trabalho perseguisse a geometria da folha seca, isto é, uma exata imprecisão de uma desmedida enganosa e certeira.

 

[I]mobilidade ativa

Plantar um jardim num carro e transportá-lo pela cidade (Carro/Árvore/Rua, 1999). É a mobilidade do imóvel. Teríamos aqui, então, uma metáfora sobre a própria metáfora como deslocamento semântico (a usurpata translatio medieval). Mourão desloca o código verbal para a condição de um locus inconstante. Com sua relação espaço/tempo infixa, o jardim deambulante poderia ser um capítulo de A história da eternidade, de Jorge Luis Borges.

Na obra Surdo-mudo (1999), uma grande pedra abafa o surdo, instrumento musical de percussão. O surdo é peça-chave na bateria das escolas de samba cariocas, introduzida por Bidê na Estácio de Sá na virada dos anos 1920 para 1930. É o instrumento de marcação, que determina todo o andamento da escola, conduz o carnaval. Em Surdo-mudo, Mourão realiza uma dupla operação antitética de alteração do significado, mantido o significante “surdo”. O substantivo (o instrumento musical) converte-se em adjetivo (“surdo”, como a incapacidade de ouvir sua música impossível). É da arte de Mourão levar o olhar a calçar-se na disfuncionalidade de objetos desconhecidos. Se o surdo define o tempo no carnaval, no trabalho de Mourão ocorre um congelamento do próprio tempo, seu aprisionamento na mudez.

No vídeo Cão/Leão (2002), uma câmera acompanhou ininterruptamente um vira-lata na rua por doze horas, das 6 da manhã às 6 da tarde, do amanhecer ao anoitecer, sem fim. O filme é mais que uma paródia de um reality show. Num mundo em que as liberdades civis estão mais que nunca ameaçadas de controle e vigilância do Estado, os reality shows são a proposta ao revés das companhias de comunicação de massa: celebrar o desejo alienante de ser vigiado permanentemente em busca dos quinze segundos de fama warholianos em troca da busca do juiz e do censor – o público consumidor. É um desejo de um estado fascista de existência produzido pelos meios de comunicação no jogo perfeito de voyeur-exibicionista. O olho eletrônico de Cão/Leão, em filmagem onisciente, é o superego deste cão humano, como o cão em A peste de Marcel Camus e Baleia, a cachorra de Vidas secas de Graciliano Ramos, foram índices da miséria e grandeza do sujeito. O homem, diz Louise Bourgeois sobre seu vocabulário simbólico, é “como um inventário dos animais”

de um lugar. O embate do cachorro contra a câmara, produzido por Cão/Leão, abre o olho da consciência. “Hoje, sente-se que não é mais necessário uma guerra para matar a realidade do mundo”, diz Paul Virilio em La bombe informatique. O cão da Lapa sabe disso. Raul Mourão diz que basta o confronto entre um cão e uma câmera.

 

Quase

A desconcertante agenda política de Luladepelúcia (2005) e suas variantes numéricas ou modais colocam esta produção de Raul Mourão no limite da caricatura tridimensional. Se fosse caricatura, o Luladepelúcia seria da família da redução e da geometria do humor fino de J. Carlos, Nássara e Cássio Loredano na cultura brasileira.

A função do humor, fenômeno econômico psíquico, é distender tensões. O inconsciente em manifestações de riso foi abordado por Freud em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927). Os objetos de Mourão rompem a norma social e recorrem à lógica dos sentidos. Olho e tato estão a serviço dos impulsos agressivos ou sexuais envolvidos no humor sobre o fofo – a materialidade da pelúcia estofada é constitutiva do caráter da obra. Em Le rire (1899), Henri Bergson nota que “a matéria resiste e se obstina”, justamente no capítulo em que analisa o “cômico das formas”. Ao deslocar sua ironia em Luladepelúcia para a própria instância material do objeto (e menos para a instância da forma), Mourão estabeleceu seu foco na materialidade da pelúcia com ácida ironia. Montou um paradoxo direto para instalar um estranhamento intimista. Seu convite háptico ao fofo, em exercício das pulsões do toque e do riso, é a chave do dispositivo erótico da obra.

O artista fundiu dois personagens das lutas de transformação política da América Latina: Lula e Guevara. Lula ressignifica o Che num aggiornamento histórico. Há um outro “quase”, agora fisionômico, que desloca para a fusão por ambivalência. Ainda sendo um e já sendo o outro. Paralelamente à fusão de duas imagens/personalidades no retrato individual Luiz Inácio Guevara da Silva (2006) de Raul Mourão, Douglas Gordon realizou o díptico Louise Duchamp et Marcel Bourgeois, um par de retratos que alterna os rostos dos dois artistas transgressores em fotos mais conhecidas de cada um.

 

História Elástica da Arte

Luladepelúcia corresponde àquela área da Física que estuda as propriedades dos materiais elásticos. Sobre elas, Mourão projeta significados, deslocando-as do comentário político para fenômenos propriamente visuais, plásticos e perceptivos. O objeto de pelúcia é elástico porque se deforma sob pressão externa, mas depois retorna à sua forma original terminada a pressão. É uma lei da física (Lei de Hooke) com a qual Mourão constitui o regime poético do objeto. É como o hímen complacente. Pressão externa pode ser indiferentemente um afago de criança ou um murro na boca do estômago. O boneco sempre volta à forma original. É então que a obra pede uma fenomenologia dos sentidos, pois é tão visual quanto tátil.

É na história da arte que Luladepelúcia simula pertencer à ordem da maleabilidade de O dentro é o fora (1963) e da Obra mole (1964) de Lygia Clark. Se a Obra mole emborrachada de Clark tem relações com o movimento da forma barroca, mas sobretudo com a noção de “dobra da alma” na geometria da interioridade do ser (a referência deliberadamente desconhecida por Luladepelúcia é A dobra, Leibniz e o barroco, de Gilles Deleuze), aqui, o que se amassa é o corpo e sua dobra será externa. Vê-se com clareza na transparência do estojo de Lulacaixa2 (2005). O título denota o duplo e a desregulamentação contábil. Blindado em sua caixa, aí, não se pode tocar o intocável. Depois da experiência háptica, sabe-se que o objeto Luladepelúcia só tem recheio. Não é a monada que é cada indivíduo barroco em sua singularidade. As malas-estojos Lulacaixa1 (2005), Lulacaixa2 e Lulacaixa10 (2005) deixam tudo às claras. Só cabe o boneco. Em duas obras de Antonio Dias, Um pouco de prata para você (1965) e Cabeças (1968), um bando de cubos-cofres proliferados, as relações entre capitalismo e esquizofrenia estão evisceradas para quem quiser ver.

Na apreensão pelo aparato perceptivo, Luladepelúcia permite o reconhecimento de uma forma conhecida no cotidiano, como nos caso dos volumes estofados de Claes Oldenbourg, Jorge de la Vega e Antonio Dias. O Telefone macio (Soft pay-telephone, 1963), a Privada macia (Soft toilet, 1966) e a bateria musical (Grand soft drum set, 1967) de Oldenbourg são simulacros pop de um som inexistente. Cada um é a antítese de si mesmo: a bateria é o som que não se toca. O Luladepelúcia abafa. É, tecnicamente, um equipamento acústico com a propriedade de abafar sons, inclusive vozes e rumores. Esta é a propriedade acústica do volume elástico estofado. No campo da percussão, Luladepelúcia é tão mudo como o Surdo-mudo de Mourão. Ambos são significantes dotados da capacidade de anular qualquer ruído. A capacidade de deformação é uma qualidade física do objeto Luladepelúcia. É do caráter de sua plasticidade. Na arte latino-americana, a proximidade de Luladepelúcia seria com a ironia de La indecisión, quadro de Jorge de la Vega (1963, col. MAM-RJ). O estofamento no bestiário do argentino produz a visceralidade pungente, própria da estética da Otra Figuración nos anos 1960. A elasticidade do Luladepelúcia deve ser justaposta às distorções anamórficas de La indecisión. O sentido ambivalente dessa Esquizobestia formula uma visão crítica do sujeito. Na obra de Jorge de la Vega, segundo Mercedes Casanegra, as anamorfoses moldam-se conforme uma atitude de vitalidade interior: estremecimento, abatimento, tensão, recepção do choque, surpresa. Em Luladepelúcia, a elasticidade estofada não cria tensões e dissolve toda energia do choque. Está próxima da impotência. Vingança antecipada de artista contra o corintiano pé-frio da Seleção canarinho, o personagem Luladejardim (2006) de Mourão está vestido com uniforme azul e branco, cores da Argentina. No jogador de pelada, falta o desejo que está investido nos objetos parciais – língua e falo – de Dans mon jardin (1967), o corpo sem órgãos de Dias.

A violência erótica da obra de Antonio Dias nos anos 1960 está nas vísceras e volumes fálicos, alguns como restos organizados de um banquete canibal. Luladepelúcia parece estar em condições de dispensar a lei do pai, transferindo-o para seu duplo: o Luladegeladeira (2006) (o duplo de Luladepelúcia não é, definitivamente, o igual na produção industrial em série). Por uma distorção ontogenética, o bico deste pingüim lustroso cresceu distorcidamente como o nariz do Pinóquio. Luladegeladeira não mente. É o que se vê – como na regra do mercado: “what you see is what you get”. Sua matéria dura insiste em restaurar a elasticidade. A verdade é que agora ele aponta como um falo assanhado. A inadequação simbólica do objeto kitsch é patente, mas o sexo cabe no sistema de arte, como o índice onanista Solitário (1967) de Dias. Sexo explícito não cabe sobre a geladeira moral da classe média, ainda que o Luladegeladeira se esforce por restaurar dissimuladamente a ordem fálica adormecida em Luladepelúcia.

 

Deu na Playboy

Talvez desde Juscelino que presidentes não se interessaram tão genuinamente por uma obra de arte como o Luladepelúcia. “Gostei muito do boneco porque ele é como o Lula real: se amolda a tudo”, disse Fernando Henrique Cardoso, numa análise político-fenomenológica da obra de Mourão, em entrevista na revista Playboy em período da campanha eleitoral.

 

Teoria da Representação

Na teoria política e constitucional da representação, Luladepelúcia representa o “eleitordepelúcia”?

 

Narcisismo

Por que o retratado quis ter o Luladepelúcia? Por que não quis o Luladegeladeira? Poderíamos, com Lacan, estar no caso específico do estágio do Luladepelúcia como formador da função do eu (Je), tal como nos foi revelado na experiência analítica?

 

Equação: se fosse um espelho, Luladepelúcia só seria fiel a um. Que seria esse um? O modelo ou o eleitor?

 

Brinquedos

A elasticidade de Luladepelúcia resulta numa similitude maior com o João Teimoso do que com o Luladegeladeira, já que sempre volta à situação original. A razão é dupla: ambos os volumes são dinamizados pelas leis da Física e os dois têm a aparência de brinquedo.

Luladepelúcia parece ter escapado do sistema de objetos de Jean Baudrillard. O destino de muitos brinquedos de pelúcia, alvo deslocado da afetividade, é se converterem em fetiche. Em O fetichismo (1927), Freud explica o fetiche como um substituto do falo materno. Sua função é sustentar a crença infantil na existência do pênis da mãe.

Walter Benjamin, sem desconsiderar as condições de produção artesanal e industrial, assinala com outro Freud (Para além do princípio do prazer) que os brinquedos, por um lado, tendem a certas realizações da libido; por outro, tendem a absorver projeções dos adultos, inclusive ideológicas. Nesse sentido, “as crianças são duras e estão afastadas do mundo”, raciocina Benjamin em Historia cultural del juguete (1928). No campo lúdico e psíquico, o brinquedo cumpre tarefas que Luladepelúcia poderia, pois, se dispor a executar. No entanto, Luladepelúcia não é um brinquedo. Sendo uma “imitação”, atando no campo da representação política, está no campo do “jogo”, não do brinquedo, numa interpretação calçada ainda em Benjamin.

 

Par

O Luladepelúcia de Raul Mourão e o Retrato de Lula (2005, coleção MNBA, Rio de Janeiro) de Piotr Uklanski indicam como uma obra de arte pode acolher uma significação conjuntural. Em 2005, no dia em que os jornais brasileiros destacavam as primeiras notícias do escândalo das propinas dos Correios envolvendo congressistas, o artista polonês Piotr Uklanski tinha um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para fotografá-lo. O olhar de Uklanski fazia as conexões Lula/Lech Walesa, o operário que acedera à Presidência de seu país. Quando estoura o mensalão, o retrato já pronto por Uklanski mostrava um Lula evanescente no ar, mas precisa era sua imagem espelhada sobre o vidro do tampo da mesa de trabalho. Era um mergulho, quase como uma carta de baralho num espelhamento infiel. O elo entre as duas imagens de Lula especulares era as mãos firmes, sobrepostas, que não escondiam a falta de um dedo perdido no trabalho. É um signo ético. O Luladepelúcia só pode aportar perplexidade.

 

Absurdos

Raul Mourão pensa uma espécie de teoria do estranhamento da cultura de massa. Não lhe interessa tanto esse unheimlich freudiano no plano individual quanto a proposição de impacto social amplo. Daí, trabalhar com o futebol (“o esporte mais praticado no mundo”), com a imagem de um presidente da República específico ou com a segurança da propriedade.

Em nova sintaxe gráfica, Mourão passou a desenhar no computador em softwares de desenho técnico, conferindo a uma série de serigrafias um acabamento semelhante à representação gráfica dos projetos de arquitetura. Não há nonsense nessas obras de Mourão, mas exercícios de perversão arquitetônica. Tampouco seriam distorções do manual Arte de projetar em arquitetura, de Ernest Neufert, que regula grande parte da arquitetura profissional ocidental. A regra não é rompida; são as expectativas que se burlam. Maracanã enterrado só mostra a cobertura, continua sendo um campo de futebol, mas sem o ruído da torcida, sem o maracanã etimológico em seu sentido de barulheira produzido em reunião de papagaios. Raul cria uma arquitetura delirante. Em um projeto de um monumento de blocos de pedra para Wally Salomão no mar, a cabeça é uma ilha (Esculturaparawaly, 2003). O poeta é uma ilha. Pode ser o próprio delírio da linguagem.

No extremo das perversões arquitetônicas, Mata-mata (2003), cujo título homicida sai do linguajar das mesas de sinuca, propõe uma área de lazer para um edifício. Mata-mata tem relação com as questões de arte e melancolia no desenho do artista austríaco Werner Reiterer. Com um humor psicanalítico vienense, um desenho de Reiterer propõe dois trampolins para o terraço do antigo pavilhão do Kunsthallewien: “Se está triste, pule; se está feliz, voe”. Para a primeira hipótese, há uma rede para se divertir; para a segunda, a certeza do suicídio. É um trabalho de crítica institucional. A ironia de Mourão é propor vantagens terapêuticas à moda de anúncio de lançamentos imobiliários. Os equipamentos de seu edifício se propõem a curar depressão de um modo radical. Há um trampolim para o abismo no corredor do sexto andar e um escorrega no terraço do prédio que lança o morador diretamente para o térreo em queda livre. É sua sutil crítica ao capital imobiliário.

 

Entropia do documento

“Fiz mais de mil fotos. Fazem parte de uma pesquisa. Elas não eram originalmente em preto-e-branco. Um dia digitalizei imagens em baixa resolução, imprimi também em baixa, fiz uma xerox da imagem numa máquina ordinária e depois levei ao Photoshop para manipular” – é o processo tecnológico do grupo de imagens da série de fotografias drama.doc (2003). O arquivo documental das cenas de grades não foi produzido para a mera consignação de existência, o passo anterior a seu imediato esquecimento. Não existe aqui o “mal d’archives” da análise de Derrida. O artista criou um processo de transmigração da imagem entre técnicas vulgarizadoras para produzir um ponto ambivalente da identidade do lugar e dos objetos. Elas foram insistentemente ativadas no processo das passagens. No limite, a imagem final ainda é quase grade e já é quase grid cubista (malha). A legibilidade das fotografias beira à anatomia de fantasmas arquitetônicos. A definição e a resolução da imagem foram violentadas. Com o resultado da operação semiológica (cada técnica da imagem oferece seu “grão” visual), as fotografias finais de Mourão requalificaram os resultados entrópicos da perversão tecnológica como uma qualidade crítica da imagem.

 

Geometria do Medo.

De certos ângulos, o ateliê de Raul Mourão parece uma serralheria. São dezenas de estruturas de ferro, irrepetidas em seu formato. Cada uma é uma. As estruturas de Mourão, no entanto, evitam a precisão minimalista da geometria da percepção de Sol LeWitt. Para Mourão, uma dose de improviso é fundamental para manter a espessura do tecido social de onde provêem estes paradigmas geométricos.

“Muitas vezes já não tem mais o aparelho de ar condicionado. Só tem o vazio”, diz Raul Mourão sobre a situação de grades nas casas. A falta, assinala o artista, é vazio e não calor. São melancólicos fantasmas que teimam em moldar uma ausência. A melancolia é não ter o eletrodoméstico, a propriedade do objeto. O vazio bastardo – mais uma perversidade de Mourão – se afasta da viés psicológico do “vazio interior” e do “vazio pleno” Lygia Clark ou da metafísica do vazio do mundo (“vuoto del mondo”) de Mira Schendel.

Raul Mourão trata de uma geometria do medo em contexto histórico preciso. O medo é o sintoma da violência social brasileira, da exclusão social e da miséria surgido como reação psíquica ao furto, roubo e latrocínio. As esculturas são monumentos do tempo presente. Nesse sentido, a escultura de Mourão indicia a História. Décadas de ausência de um projeto social de incorporação de grandes massas ao mercado de trabalho e consumo geraram uma tensão social, em parte resolvida por uma violência civil difusa, sobretudo com crimes contra a propriedade. Essas estruturas de Mourão têm correlação com os muros de Ivens Machado e objetos com cacos de vidro de Machado e Bispo do Rosário. Na exposição Obstáculos/Medidas, na Área Experimental em 1975, Ivens Machado apresentou uma instalação composta pela remontagem, em altura crescente, de muros na cidade. Uma coluna vertical de fotografias apresentava, na altura de cada um, os muros originais. Para Bispo do Rosário, o desejo de ter uma casa se fixa num longo objeto de madeira coberto por cimento com cacos de vidros, com uma legenda: “434 – como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa”. Cobrir muros com cacos de vidro pontiagudos é uma técnica construtiva popular que impede a intrusão. Na divisão entre o público e o privado, nas obras dos três inscreve-se a defesa da propriedade. Mourão, Machado e Bispo do Rosário produzem objetos aflitos.

O trabalho de Raul Mourão desloca a malha cubista para a experiência de poder e a lógica da arquitetura vernacular da classe média, incluindo seus mecanismos de proteção do capital, símbolos de status, instrumentos de trabalho e aparelhos domésticos contra o roubo e o vandalismo. De imediato, é necessário admitir que o trabalho segue uma lógica de relações periféricas do capital. Mourão refere-se a essas esculturas como “acontecimentos das grades”. “São estruturas lineares de segurança. Escapei disso para outros objetos que se espalham pela cidade, como barracas de camelô. (…) Algumas estruturas eu reproduzo. Outras, transformo”, conclui. Raul Mourão produziu um conjunto de esculturas do medo (e da previdência). A outra escultura proposta por Mourão é a forma ambulante, um emblema da economia informal, indicativo de outra atividade marginal no capitalismo periférico.

Há um medo que é simétrico, implica numa oposição de alteridades. É a partir dele que Mourão monta a malha. Os Obstáculos/Medidas de Ivens Machado tratavam dessa confusão entre domínio e prisão. Sempre direto, Bispo do Rosário não a entrada de qualquer pessoa em sua cela no hospital psiquiátrico. Segregou o mundo fora de sua cela. Em 1993, Iñigo Manglano-Ovalle desenvolveu o projeto Video neighbors’ network com as gangues juvenis, que dividem a cidade de Chicago em territórios, a fim de utilizar o vídeo para a construção da identidade coletiva da vizinhança. As estruturas em grades de ferro, nas quais os vídeos eram exibidos, eram a metáfora transparente dos próprios territórios de cada grupo. A obra expunha o território como domínio e prisão da gangue. A extraterritorialidade estava cassada. As esculturas de Mourão se constituem como aparatos do medo, disparadores de paranóia. Algumas são definidas pela lógica da forma do objeto (como o carro-grade e o ar-condicionado-grade) e outras parte do abstrato.

Se objeto está confinado por uma forma, o resultado final monta uma malha do medo. Em sua dureza brutalista, as grades, na instância da arte, enformam um outro volume. Do trabalho com a ausência dos objetos protegidos se constrói uma escultura do ar e do impalpável. No atelier, as esculturas se misturam. Integram-se umas nas outras, como se seguissem o plano da exposição Entonces. Mais que isso, buscam-se como máquinas desejantes. Formam conjuntos aleatórios. No limite da saturação formal, essas esculturas revertem seu sentido mecanicista regulamentador e se convertem em objetos parciais. No plano psíquico, o que se condensa simbolicamente no corpo sem órgãos já não é o vazio, mas a falta (manque). As esculturas estão empilhadas, articuladas, interpenetradas, justapostas. O espectador defronta-se com fluxos de ausências. É neles que deve situar seu olhar.

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