Velha Bahia
Kátia Borges
Em 1927, o jovem agente de publicidade do jornal Diário de Notícias, Voltaire Fraga, apaixonou-se perdidamente por uma máquina fotográfica alemã Volkslander. Do "casamento" entre os dois, oficializado em 1930 nas páginas centrais da revista O Cruzeiro, surgiu um dos acervos fotográficos mais ricos sobre a "Velha Bahia". São mais de duas mil fotos, "clicadas" sob a ótica de um artista que tem como ídolo o francês Cartier-Bresson. O material, importantíssimo como registro histórico e obra de arte, está guardado em caixas e mais caixas no quarto do fotógrafo, hoje com 84 anos. "O ideal seria que alguma instituição adquirisse os negativos. É a memória da nossa terra, e não é justo que ela se perca no abandono", lamenta.
E a memória do nosso povo esta lá, inteira e em P&B, nas festas tradicionais, fotografadas à exaustão, nas igrejas, nas ruas, nos pontos turísticos. O detalhismo do fotografo impressiona, como no "estudo" sobre as vestimentas típicas de uma das provedoras da Irmandade da Boa Morte, em 1951. Preocupado em registrar a "alma" do povo baiano, Voltaire não economizava filme quando o assunto era a cidade e o modo de vida das pessoas. "Não acredito em fotos coloridas ou posadas. O verdadeiro artista da fotografia dispensa essas coisas e prefere o flagrante", diz. Famoso por conseguir obter sempre os melhores ângulos, ele guarda histórias e mais histórias sobre cada foto. "Meu primeiro trabalho, que rendeu um emprego como fotógrafo, foi feito de cima de um telhado", lembra. Era o único modo de obter uma boa fotografia da Escola Duque de Caxias.
Antes disso, quando ainda era amador, Voltaire conseguiu a proeza de ocupar duas páginas centrais de extinta revista. O Cruzeiro. "Eram fotos da igreja do Bonfim. Eles deram como a Bahia nas fotos de Voltaire Fraga", lembra. Famoso nos círculos intelectuais da cidade, o fotógrafo atendia a mil solicitações. "Virei fotógrafo da sociedade", observa. Mas o dinheiro para equipamentos e sustento vinha quase sempre dos trabalhos, inúmeros, para empresas como Odebrecht, Usiba e Caraíba Metais, entre outras. "Sou apaixonado por fotografias de arte e continuo sendo. Se estivesse em condições, sairia fotografando a cidade, como sempre fiz", diz. O cuidado com o resultado das imagens é outro diferencial no trabalho de Voltaire Fraga. "Sempre fiz questão de revelar e ampliar minhas fotos. Só o fotógrafo sabe a luz exata de cada trabalho", justifica. E a luz que perpassa as imagens captadas pelo olho de Voltaire parece sempre estar no lugar certo. Seja na foto da baiana com o seu tabuleiro de acarajé na Baixa do Bonfim, em 1951, ou no retrato "flagrado" do motorista do empresário José Vita, em 1939. "Estou disponível para propostas. Tenho até uma curadora para as fotografias, que é a Maria Sampaio", diz. Mas se a memória fotográfica da Bahia corre o risco de perde-se, a de Voltaire continua ótima. "Só lamento não ter visto a exposição de Bresson no Museu de Arte Moderna. Do resto, não tenho porque me arrepender", confessa.
BORGES, Kátia. Velha Bahia. A Tarde. Salvador, 24, out, 1995, p.8, caderno 2.