Almandrade por Marc Pottier
Marc Pottier
A 3a Bienal da Bahia em 2014 foi para mim uma ocasião privilegiada para descobrir o trabalho de Almandrade. Vários aspectos de sua obra foram apresentados. Uma primeira proposta foi um incrível exercício tridimensional, indo de uma grande escultura localizada no campus de Ondina (UFBA) a formidáveis maquetes em pequena escala no Convento de São Bento: composições coloridas que dialogam com a paisagem e os edifícios ou os volumes do convento, evocando, em um interessante paradoxo, o rigor das formas de Franz Weissmann ou de Amilcar de Castro, mas também um labirinto de Hélio Oiticica (como podemos ver hoje em Inhotim). Poderíamos pensar ainda em Mondrian, com suas paisagens-composições refinadas, feitas de horizontais e verticais. Os diferentes planos que se interpenetram oferecem aos visitantes um jogo equilibrado de formas geométricas coloridas e arejadas, em algumas situações, por janelas de sombra e luz de tradição construtivista e minimalista. Como Francisco Antônio Zorzo chama atenção, Almandrade “intencionalmente mantém uma distância do barroquismo, do expressionismo e de outras tendências do tipo sensual muito recorrentes na arte baiana e brasileira”. Na verdade, ao descobrir essa obra tentacular, a Bienal apresentou também numerosos desenhos e poemas, assim as referencias artísticas se apagam um pouco e nos fazem viajar para longe da Bahia.
“A pintura é concreta e não abstrata porque nada é mais concreto, mais real do que uma linha, uma cor, uma superfície”, reivindicava Theo Van Doesburg e os membros do grupo de Arte Concreta formada em 1930, em Paris. Eles pregavam uma forma de arte não figurativa, tendo rompido com todos os outros processos de abstração do mundo real e privilegiando a manipulação direta e racional dos constituintes plásticos da obra de arte. Almandrade pertence a era do pós-construtivismo, incorporando a contribuição do neo-concretismo brasileiro e ainda a do movimento da Poesia Concreta, redistribuindo postulados da Arte Concreta por um diálogo precursor com a Arte Conceitual.
Mas essa participação na Bienal da Bahia foi apenas uma amostra, um aperitivo antes de sentar a mesa para quem desejar descobrir quem é Almandrade e as diferentes faces de sua obra magistral.
O menos que se pode dizer é que há 45 anos Almandrade, nascido em 1953, arquiteto de formação, mostra ter mais de um coelho na cartola. A vocês se deixarem impressionar! Teórico, jornalista, professor de arte em Salvador, na Bahia... Como artista, sua obra faz malabarismo com esculturas e instalações, gravuras e desenhos. Desde os anos 1980, ele é o autor de vários livros e coletâneas de poemas. Antes, em 1974, havia editado a revista “Semiótica”*.
Ele nos conduz, a sua maneira, invocando o construtivismo, o minimalismo, letrismo e o conceitualismo. Essa é a razão, sem nenhuma dúvida, pela qual sua criação atinge escalas maiores com seus poemas visuais. Se ele tem como origem a Bahia, sua obra tem uma vocação universal. Como disse Oscar Wilde: “meu lugar é o mundo”, amaria dizer Almandrade. Ele rapidamente inventou sua própria assinatura na qual se destacam as influências de Hélio Oiticica ou Lygia Pape em termos estéticos, ou de seu caro amigo Wlademir Dias Pino e Ferreira Gular no mundo da poesia.
Bataille, Jorge Luis Borges, Lautréamont, Sade, Bachelard, Machado de Assis, Italo Calvino, entre outros, são suas referências. Em 1973, ele encontrou em Salvador Augusto de Campos (um dos fundadores do movimento de Poesia Concreta no Brasil, assim como da revista literária Noigandres), e foi também amigo do famoso poeta, tradutor, crítico e ensaísta Décio Pignatari. “A linguagem poética difere da linguagem que utilizamos para a comunicação diária. Cada poeta explora a linguagem na busca de um acontecimento inesperado, de uma experiência singular”; dizia Pignatari.
Necessário lembrar que a Poesia Concreta nasce simultaneamente em diferentes países do mundo nos anos 1950, como um movimento de vanguarda. Trata-se de uma arte carregada de tendências experimentalistas que nasce a partir de novas formas de organização do texto. Esse movimento poético se distancia das estruturas convencionais. Ele formou um novo paradigma poético, influenciado pelos movimentos dada, modernista e futurista, assim como por grandes pensadores e poetas como Stéphane Mallarmé (a grande referência desse movimento), Apollinaire, Lewis Carroll, Alfred Jarry, Ezra Pound, James Joyce... o movimento concretista foi lançado publicamente no Brasil na Exposição Nacional de Arte Concreta, entre dezembro de 1956 (São Paulo) e fevereiro de 1957 (Rio de Janeiro). Essa nova forma de poesia, que se funda sobre uma tradição da poética visual, é definida como “um elemento da teoria da comunicação e da semiótica”. A frase é desorganizada, o discurso partido com suas próprias palavras desordenadas, com a intenção de criar novas relações entre elementos sintáticos, procurando mesmo romper com sua própria sintaxe. O espaço gráfico toma um novo papel no poema. Almandrade sente-se como um artista gráfico conversando com a literatura e quer afirmar que a poesia faz também parte das artes visuais.
Sob a forte influência da poesia concreta, o próprio nome do artista se torna assim sua primeira obra: “Antônio Luiz M. Andrade, cujas iniciais formam A.L.M.A., daí o compósito ‘Almandrade’. Mas esse é o país dos “Andrades”: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade... Destaco que ‘Almandrade’ lembra também o proparoxítono “Sousândrade”. Assim temos uma reunião de nomes de poetas marcados pela irreverência, pela ousadia e, principalmente, pela radicalidade da invenção’, comenta o professor Jayro Luna.
Poderíamos quase dizer que Almandrade inventou uma nova forma de ‘Haiku brasileiro’, reduzido a sua mais simples expressão. As 17 sílabas em três versos se resumem a uma única imagem na qual o grafismo joga com as letras. Essa forma concisa, ativa e viva nos convida a descobrir aquilo que está oculto; ela propõe uma performance visual que obriga o observador a cruzar as informações, descobrir os sons ritmados de sua leitura para poder apreciar plenamente a obra. Esse minimal é muito mais complexo do que parece a primeira vista, e obriga a procura de chaves poéticas para os diferentes ângulos abordados. Seu repertório é geralmente limitado a alguns signos e palavras. O artista leva a linguagem a seus limites e se dá o direito de transformar a ordem e o significado das coisas. É importante para ele inventar outras relações com o mundo e seu cotidiano. “A grande riqueza visual aliada à semântica da proposta fazem de Almandrade um dos mais criativos operários da linguagem. Um construtor.” Gutemberg Cruz. Almandrade participou ainda do movimento poesia/processo, modo de expressão visual radical, sem teoria, onde as palavras do poema poderiam desaparecer diante de um simples sinal.
“A mão do poeta inventa e relaciona imagens, mobiliza o pensamento de quem olha na busca de uma história, ou melhor, de uma pré-história das artes gráficas e sua poética. Uma performance da visualidade que viaja no tempo e exige de nós uma contemplação provocante.”, escreve o artista.
Almandrade fez ainda parte do grupo Etsedron. Devemos nos lembrar que nos anos 1970 aparece a Arte Ambiental, onde os objetos de arte estavam integrados a vida cotidiana. No Brasil, Frans Krajcberg e o Grupo Etsedron se pautaram por intervenções nas paisagens agregando artes plásticas, música, dança, fotografia, literatura e cinema. Obras, integrando-se à natureza e à realidade social do povo brasileiro, que estimulassem os vínculos entre arte e vida.
Escultura, assemblage feita com objetos simples do cotidiano, desenhos, gravuras; todas suas obras participam de uma sutil base de humor, de onde nasce todo o prazer. Ele nos faz pertencer a um mundo inteligente onde é possível conviver com o real. Seu vocabulário gráfico rigoroso, com uma economia de meios, os jogos de formas, às vezes de oposições cromáticas, propõem obras mínimas, sutis e sem falsificações.
Almandrade joga com o cheio e o vazio e ainda com seus textos que colocam o espaço natural em questão, nos obrigando a procura pelo entendimento de seus enigmas. A partir de seus Ready Made mentais, de signos e de palavras simples, eles nos força ainda a refazer mentalmente o processo de construção da obra, podendo levar à frustração imposta pela dúvida. Suas obras silenciosas e sintéticas sob formas essenciais são aforismos visuais que conduzem a novas percepções e concepções.
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
(*) A revista "Semiótica" só teve um número, julho de 1974; éramos estudantes sem qualquer pretensão, os outros que faziam parte do grupo se dedicaram a outras atividades, não pretendiam ser artistas nem poetas. Foi uma experiência numa cidade provinciana que desconhecia a vanguarda e recusava a contemporaneidade, não tínhamos apoio, foi uma publicação com seus erros.