O catador na floresta de signos
Roberto Conduru
Uma dinâmica ao mesmo tempo centrípeta e centrífuga constitui as obras de Alexandre Mury. Ele se faz onipresente para figurar outros, para ser muitos outros. Agora, empresta seu corpo a Exu, Ogum, Xangô, Iansã, Oxumaré, Oxum, Oxóssi, Ossanha, Obaluaê, Nanã, Iemanjá e Oxalá.
A princípio, a nova série – Orixás – pode sugerir uma ruptura com sua obra prévia. Contudo, é possível perceber como ele desdobra seu trabalho anterior, incentivando revê-lo à luz de seu atual momento. Não causa tanta estranheza o foco em divindades. Haja vista, por exemplo, seus São Sebastião, Shiva e Zeus Amon. Surpreende mais o modo como são representadas.
Antes secundário, ganha proeminência um hieratismo ora sóbrio, ora dramático, por vezes lírico. Mas a sacralidade inerente ao tema religioso não inviabiliza o humor algo herético que tem caracterizado suas imagens. Não tanto por explicitar sua masculinidade em representações de orixás femininos, pois a relativização dos gêneros é algo vivenciado nos terreiros a partir da fusão de diferenças em conjunções de corpos naturais e divinos. Pode causar mais incômodo seu corpo nu, sem marcas visíveis de iniciação e a princípio classificável como branco na complexa paleta constituída pelas relações étnico-raciais no Brasil. Se a nudez vai contra ditames e hábitos religiosos, para muitos pode ser ousado alguém não afrodescendente e não iniciado se apresentar não apenas como um mas como 12 orixás.
Se usualmente Mury explorava a diversidade para dar vida a suas encenações, em sua exposição individual anterior, Eu sou a Pintura, concentrou-se em monocromos. Embora prevaleça o verde na série mais recente, interessa menos a cor e mais a autolimitação do artista à flora. Kosi Ewè Kosi Òrìsà; simples, direto, profundo, revelador é esse dito ioruba – sem folha não há orixá. Parafraseando esta expressão fundamental para o candomblé e outras religiões com matrizes africanas no Brasil, deve-se atestar: sem folha não há Orixás. Para representar divindades do panteão afro-brasileiro, ele tomou esta lei como princípio de ação e valeu-se apenas de folhas, flores, frutos, ramas, raízes e outros elementos botânicos.
O patrono de Orixás é Ossanha, o Senhor das Folhas, que rege seu uso litúrgico e medicinal. Eleição que permite pensar outras dimensões políticas do trabalho de Mury. Estas imagens estão vinculadas à ecologia. Sem folha não há orixá, nem fotossíntese e, portanto, oxigênio, vida no planeta. A experimentação com matérias in natura norteia ainda a série Os Quatro Elementos, com representações de fogo, ar, terra e água. Elementos que, por serem fundamentos dos orixás, determinam a estruturação das imagens no espaço expositivo e no catálogo. Sutilmente, estas séries remetem à crise mundial causada por desmatamento, escasseio de fontes e mananciais d’água, aquecimento. Falam de como se deterioram água, ar e terra, a Terra.
Orixás também é política ao propagar novas imagens de divindades afro-brasileiras. Reitera a vitalidade do candomblé, a atualidade de sua cosmovisão e de seu imaginário sacro. E reafirma a necessidade de difundi-los publicamente em uma conjuntura social marcada por cerceamentos e perseguições às religiões com matrizes africanas no Brasil.
Outro diferencial destas séries é Mury ter criado suas próprias representações. Sem partir de obras preexistentes, evita remissões explícitas a ícones exponenciais da história da arte e da cultura visual. Suas imagens são próprias porque o artista lhes dá sua carne, se cerca e se veste de matérias que são essenciais aos entes representados: os elementos da natureza e as folhas específicas de cada orixá. São próprias também por serem criações suas e de ninguém mais. Antes, para além de sua presença, sua subjetividade se delineava à medida em que colecionava imagens e ao conjugar acréscimos e subtrações nas releituras. Agora, ela corre outros riscos, manifestando-se desde o esquema norteador até as minúcias de cada mise en scène.
Ainda que a imaginação tenha agora mais peso do que a memória, permanece o diálogo cerrado com a História da Arte, anunciado desde a primeira hora de sua trajetória. Além de rever o tema dos quatro elementos, ecoam relações entre visadas e gêneros artísticos, entre objetos da visão e modos de ver. Enquanto os orixás têm enquadramento vertical que está mais associado aos retratos e autorretratos, as imagens dos elementos da natureza têm formato dominantemente horizontal – uma novidade na obra de Mury – que é tradicionalmente empregado em representações paisagísticas. Nesse sentido, a última série deixa uma questão: horizontalidade, paisagismo e autoimagem minimizada anunciam um novo caminho em seu trabalho, menos centrado na figura humana, menos autorreferente?
O confronto com a História da Arte também persiste no diálogo que Orixás mantém com algumas séries de representações das divindades afro-brasileiras. Sem citações, estas imagens se alinham com outras interpretações desse panteão. Notadamente, com as fotografias publicadas por Pierre Verger em seu livro Orixás, as representações feitas por Carybé em diferentes meios e, mais recentemente, o conjunto Bori de Ayrson Heráclito. Enquanto os desenhos, pinturas, esculturas e impressos de Carybé são reelaborações gráficas de suas experiências da vida religiosa na Bahia, dentro e fora dos terreiros, as séries de Verger e de Heráclito são registros mais imediatos: no primeiro caso, de rituais religiosos; no segundo, de uma performance artística. O acontecer de um rito também é primordial para que as imagens de Mury venham à luz. Múltiplas, indubitavelmente artísticas, suas encenações foram menos públicas e mais mediatizadas, derivando de ações que, embora tenham se dado muitas vezes em espaços de uso coletivo, convergiram para espaços restritos à atuação do artista e de seus poucos colaboradores. En passant, assinale-se: situações não isentas de lampejos mágicos. Características que aproximam sua série às poses fotografadas no estúdio, em preto e branco, por Mário Cravo Neto, algumas inclusive representando orixás.
Tendo em vista a potência do candomblé e da arte dedicada às relações entre Brasil e África na Bahia, Mury considerou necessário ir até lá para realizar Orixás. Não à toa, ele entende esta série como fruto de uma residência artística. Uma residência em trânsito, eu diria, entre territórios consagrados a divindades: São Salvador e São Fidélis, entre outras. Pode-se dizer que esta série foi iniciada há muito tempo, na cidade natal do artista, no Norte do Rio de Janeiro, a partir do jardim constituído por plantas comestíveis e de uso medicinal, portanto de cunho mais utilitário do que estético, cultivado por sua mãe, Hilda de Carvalho Mury. Com efeito, para fazer Orixás, foi necessário catar folhas. Literalmente, colhê-las em jardins, quintais, lojas de ervas, matas, florestas. Metaforicamente também. No candomblé, se diz que alguém cata a folha quando aprende algo. Com efeito, Mury conquistou conhecimento, catou folhas no candomblé, na arte e além.
O processo produtivo das imagens e a interlocução com os trabalhos de Verger, Heráclito e Cravo Neto fazem pensar se a fotografia é o fulcro da obra de Mury. Por um lado, é. Como sua obra prévia, há esta série porque a fotografia existe. No caso de Orixás, a velocidade do processo fotográfico é fundamental para preservar a fugaz existência desses tableaux vivants, com temporalidade por vezes brevíssima devido à curta sobrevida de algumas folhas e flores. Entre parênteses pode-se perguntar: sem fotografia há arte contemporânea? Por outro lado, não é. A Mury interessa menos a fotografia em si e mais o acontecimento, sua momentânea performance, quase como uma efêmera escultura, em uma cena viva capturada pela luz, processada e arquivada eletronicamente, impressa em papel.
Nesse sentido, é preciso ressaltar como a releitura feita por Mury de uma imagem de Ossanha criada por Carybé é a exceção que confirma outro modo de significar, ainda que não seja inteiramente novo, nem seja entendido como regra. Como Ossanha, ele habita a floresta. Mas sua mata é feita de outra matéria. Suas folhas são os signos, também ricos em sua variedade: ícones, índices, símbolos. Signos embaralhados, pois ele sabe que, assim como ocorre com as folhas no candomblé, a mágica resulta da mistura. A qualidade indicial é a que mais sobressai nessas imagens compostas por rastros luminosos de acontecimentos. Contudo, se não reverberam imagens preexistentes, elas mantêm a iconicidade na figuração dos elementos botânicos e do artista, já instituído como ícone, em sua obra e para além dela. E potencializam a dimensão simbólica, seja porque, mais do que pontos de chegada, os orixás abrem múltiplos significados, seja porque com eles, como visto, Mury fala de muito mais.
Mury adentra na mata, na floresta de signos, para catar a folha e aprimorar a mistura. E sabe que é preciso sacrifício, é necessário oferecer o corpo para que o sagrado se instaure. O sagrado da arte, bem entendido. Assim como a etnografia que a antecede, nessas imagens a incorporação é artística. Incorporação centrípeta, mas pouco autorreferente, pois visa à corporeidade da arte – ao corpo da obra e, centrifugamente, aos corpos por ela conectados. A imagem é encarnada, ganha corpo ao ser impressa luminosamente no papel. Mas cabe a seu corpo, mínimo que seja, conectar os corpos do artista e do público. O que permitiria abrir outros parênteses e questionar se há arte contemporânea sem corpo. Contudo, estas séries e o trabalho precedente de Mury ensejam ver algo mais profundo, apesar de óbvio – sem corpo não há arte.