A cor pungente
Mario Gioia
Uma figura em branco, a pontuar uma série de composições pictóricas de cromatismo intenso, demarca o mistério em meio ao exuberante, ao ostensivo. Faz par com a protagonista do vídeo Rastro, em que a personagem, sempre vista de costas, faz uma caminhada de volta para casa e, nesse trajeto, recolhe uma série de cacarecos estranhos, volumosos e coloridos, que vão ser incorporados às suas vestes, num procedimento que embaralha identidade e estranheza, alteridade e intimismo. E a cor preta que escorre pela superfície de outros quadros gera fricções e ruídos na configuração a priori festiva das telas, dando contornos menos otimistas às obras que chegam ao mundo.
A produção de Maria Lynch é um corpo estranho na complexa tessitura da arte contemporânea brasileira, nesse começo de século 21, e isso é bom. Para a individual que fica em cartaz na Roberto Alban Galeria, em Salvador, a artista carioca parece desdobrar questões já rascunhadas na história da arte do país. Nessa linha, podemos eleger a percebida em Baile à Fantasia (1913), de Rodolfo Chambelland (1879-1967), trabalho-chave da nossa modernidade, quando forma e conteúdo se unem de modo intrincado e salientam esse espírito de tempo (na época, virada do Novecentos para o século 20) que carrega, de modo mais latente ou explícito, a melancolia e o pessimismo. São sentimentos que irão denotar que, sim, o festejo carnavalesco retratado tem data para acabar. Mais o peso de uma Quarta-Feira de Cinzas do que a embriaguez dos dias comemorativos. É como se as figuras esvaziadas e em branco das novas pinturas de Lynch fossem reedições contemporâneas desses antigos personagens, só que agora estrelando uma dança desritmada, em ambientes fragmentados, incompletos e não preenchíveis, mesmo que envoltas num colorido sedutor. Os foliões de Chambelland e as mulheres de telas com títulos evocativos _ Vácuo, Pode Ser e Nem Tanto, por exemplo _ rimam angústia e euforia, isolamento e comunhão, engessamento e volatilidade.
Em termos formais, a pintura da artista carioca traz um dado livre e que não foge do experimental, algo que pode incomodar partidários de uma produção mais preciosista. O trânsito por uma zona movediça entre o figurativo e o abstrato e a destacada versatilidade de meios, já que Lynch assina com o mesmo apuro seus trabalhos pictóricos, tridimensionais, performativos e audiovisuais, ajuda a incluí-la num tipo de pintura expandida, tão vista em circuitos fora do Brasil e que, por aqui, por vezes não é muito compreendida ou analisada.
Assim, ecos de Peter Doig, Cecily Brown e outros nomes contemporâneos da linguagem ressoam na numerosa produção de Lynch, mas ela não deixa de frisar a própria poética em diferentes suportes. É possível relacionar, por exemplo, a grande instalação Ocupação Macia (2012), trabalho que a artista fez para o Paço Imperial, no Rio, e que se destacava pela obsessiva justaposição de brinquedos, bonecos e similares numa única sala, com pinturas recentes nas quais a tinta negra escorre, tal qual um elemento contaminante, mas que também serve de fundo e auxilia na composição final da peça. Essa materialidade dúbia é ressaltada, por exemplo, quando a artista deixa os traços do desenho na configuração final das telas, mesclando procedimentos de desenho e de pintura, no uso simultâneo do denso óleo e da leve acrílica e na escolha de escalas generosas, para que o observador realmente tenha um embate corporal com essas obras.
Lynch gosta de encarar a sua produção como uma grande colagem. Faz sentido, para uma realizadora cuja obra já foi descrita como “surrealismo tropicalista” _ palavras de Ligia Canongia, a respeito das peças tridimensionais da artista. Pois se o Dadá e o surrealismo pregavam a associação livre num momento pontuado pelas inovações sociotecnológicas e de outras ordens, o que reservar ao artista de hoje, num universo tão híbrido, multifacetado e de hipercirculação? O mashup de Maria Lynch nos coloca no centro desse turbilhão. E, nesse instante, estaremos embriagados ou serenos?