Ser e Ter
“Há outras urgências, especialmente relacionadas a esse momento de transição que vivemos, a essa idéia de que as coisas não podem, mas devem mudar. Não sabemos exatamente para onde ir, mas sabemos que uma ruptura é necessária. A frustração que vivemos tem a ver com a impossibilidade de projetar o futuro. A idéia de que consumismo e materialismo não satisfazem os desejos humanos”.
A fala acima é do curador da 31ª Bienal de São Paulo, o irlandês Charles Esche, e refere-se à condição atual da arte que não deveria frustrar-se e nem sujeitar-se a esta certeza de que o que nos pauta na vida contemporânea são o consumismo e o materialismo. Ele nos incita a mudar. Vivemos em um mundo da precificação das coisas. Um mundo desencantado onde a religião que é um dos pilares da sustentação do homem, virou mercadoria e não se difere de uma sessão paga de um show business. Reina na sociedade, que também perdeu sua ideologia, a condição triunfante do consumismo. Tudo se torna mercadoria, inclusive as relações humanas e a arte. Você é o que você consome e a arte responde a isso e se serve desta distinção. Somos para o Mercado o que consumimos e no mundo da arte você é importante pelo que vende, pelo que influência nas vendas e, principalmente, pelo que compra.
Ser e ter.
A arte que reflete o seu tempo não escapa dessa condição hoje de mercadoria, mesmo quando como arte que se rebela contra esta condição e faz sua autocrítica buscando se diferenciar de tudo isto. Este segmento crítico também estaria dentro da conformidade “aceitável” e “negociável” pelo mercado. São muitos os artistas que trabalham com estas questões contestatórias. Mas a contestação artística virou apenas mais um estilo.
A arte transformou-se em uma espécie de commodities, um simples produto. Uma simples mercadoria. Não é fácil para o artista encarar esta condição para sua arte, pois, inevitavelmente, também se renderam ao mercado. Parece não haver saída à esta situação insolente do mercado.
A arte precificada passou a ser opção de investimento financeiro totalmente inserido nesta lógica de consumo que marca o mundo atual. Mas também como investimento é para os poucos que entendem desse “mercado”. Um sistema cheio de manhas e espertezas.
Com a crescente valorização da arte cresceu também o interesse das pessoas que enchem os museus para conferir estas obras de arte tão valiosas, na casa de centenas de milhões de dólares. Essa mudança de estatuto teria democratizado o acesso e alterado o modo de fruição do público que passa a ser mediado pelo “quanto vale este quadro na parede do museu?”.
Desse modo, existem hoje artistas que trabalham explicitamente para serem grifes e atender a este mercado que tem o seu lugar nas inúmeras feiras que brotam por todos os cantos do planeta, impondo aos galeristas uma agenda enlouquecida, exigindo um deslocamento desses profissionais jamais visto no mercado de arte.
Dessa forma, fazer ou falar de arte hoje parece uma banalidade se não uma agressão ao bom senso diante das emergências da sociedade contemporânea, em que consumir virou palavra de ordem. Passou a nos identificar, inclusive. No jargão do político, do mercado e da economia, nos tornamos apenas “consumidores”. Deixamos de ser cidadãos, povo, público ou gente para sermos apenas, os consumidores. Desde os consumidores de shoppings centers aos consumidores de cultura. Somos habitados pela mercadoria. “Se me fazem desejar consumir, me deixem consumir”. É mais ou menos isso que entoa alienadamente a nossa sociedade.
Neste contexto que vivemos o trabalho do artista Luiz Hermano quer apontar para esta emergência, de que consumismo e materialismo não satisfazem os nossos desejos pequenos e nem as necessidades maiores da humanidade. Pelo contrário, é responsável pela ansiedade e frustrações que vigoram na sociedade. São estas as questões que estão na abordagem de suas mais recentes esculturas.
São esculturas que estão mais para instalações que quebram o ideal artístico do que para uma escultura segundo os cânones da arte vigentes até a muito pouco tempo em que prevalecia a noção de Belas Artes.
As esculturas e instalações de Luiz Hermano estão muito distantes desse ideal. A da escultura definida por Giorgio Vasari, no livro Vidas dos Artistas, editado e publicado pela primeira vez em 1550, em Florença, na Itália. Os conceitos defendidos pelo historiador italiano buscavam a forma plena (perfeita e pura) em que a boa escultura (para sua época) precisaria ser composta de partes consideradas perfeitas, ou seja, a boa escultura seria aquela que é fruto de uma arte que retiraria o supérfluo do material trabalhado. Reduziria este material à forma de corpo que foi desenhado na idéia do artista. Este por sua vez, deveria ter em mente que todas as figuras, de qualquer tipo, sejam elas entalhadas no mármore, fundidas de bronze ou feitas de estuque ou madeira, precisariam ser de vulto, de tal modo que, girando-se em torno delas, seria possível vê-las de todos os lados para serem chamadas de esculturas perfeitas.
Não é este o caso das esculturas de Luiz Hermano que são mais bem definidas como instalações escultóricas que saem do chão e vão para a parede e de perfeitas, não têm nada. Os defeitos, as imperfeições do trabalho artesanal, feitos com as próprias mãos e o acaso, são incorporados em suas peças escultóricas.
Pelo contrário, à idéia clássica da escultura não vale para Luiz Hermano. Não há uma busca pela perfeição em seus trabalhos que são “manuais”. A imperfeição é parte integrante de sua obra com trabalhos que ora ficam no chão ora vão parar na parede. Eles possuem um “ar” de precariedade, de mal feitos até. Os elementos que os compõem são materiais industrializados bem aos moldes do ideal das esculturas minimalistas. Claro, sem o rigor visto naqueles trabalhos feitos de materiais retirados de sua seriação para adquirirem a forma escultórica plena no seu isolamento no espaço expositivo, e sem a intervenção da mão humana para lhes dar formas. As esculturas minimalistas são emprestadas da serialização industrial para tornarem-se objetos únicos quando descontextualizados do seu fim, de sua funcionalidade.
Nas esculturas e nas instalações de Luiz Hermano o que vemos são materiais industrializados como os capacitores, brinquedos de plástico, rastelos, miniaturas de bichos, materiais plásticos diversos como esponjas, e os fios metálicos que usa para construir suas tramas aramadas e imperfeitas. Feitas à mão são agrupadas e amarradas com os fios. Também são construídas com solda. O resultado são tramas que lembram os tradicionais cobogós difundidos e bastante usados pela arquitetura moderna brasileira. Estas estruturas, como no trabalho Gato e Rato, de 2012, feito de alumínio pintado, conferem humor à arte construtiva brasileira.
Há também os Icebergs. Esculturas que são feias de perfilados de alumínio, material de uso recorrente em sua obra. São cortados e soldados de maneira a construir volumes geométricos que lembram as formas das esculturas do italiano Umberto Boccioni (1882 – 1916), que foram chamadas simplesmente de “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”. Estas esculturas de Luiz Hermano são inspiradas na paisagem carioca com suas formações montanhosas e que lembram também as grandes massas de gelo que vagam pelos pólos do planeta.
Nas suas esculturas as letrinhas, as luzes coloridas, os sons reais e imaginados no silêncio de suas instalações e, mais recentemente, foram incorporados os carrinhos de supermercado em miniatura fabricados na China. Este brinquedo ou objeto decorativo é o elemento usado na construção escultórica mais recente.
Não se sabe bem qual a finalidade desses carrinhos, se são brinquedos ou objetos de decoração. Parecem objetos inúteis.
Ao trazer para sua obra estes carrinhos em sua forma seriada, Luiz Hermano lhes dá uma carga simbólica ao juntá-los em suas armações, criando formas e situações escultóricas orgânicas que vão para a parede. O artista quer juntar a estas articulações vigorosas uma crítica ao estágio da nossa sociedade contemporânea, comentado na introdução deste texto. Uma sociedade consumista e individualista, pautada pelo dinheiro e pelas coisas materiais.
O desenho desses carrinhos de supermercado virou símbolo e indicador de compras nos sites de vendas da internet. Funcionam como ícones para assinalar o local onde se acumula os produtos comprados. De alguma maneira representam a nossa ansiedade de consumo e o desejo desenfreado por comprar e comprar. Por fim, tornou-se símbolo do consumismo que assola a sociedade contemporânea. Consumir é uma nova forma de relacionar-se no século XXI. Os Shoppings Centers são as novas ágoras das cidades contemporâneas em países como Brasil, China e Estados Unidos da América. A instalação central que domina o saguão da galeria feita de carrinhos reais, um coluna vertebral a sustentar a exposição, faz uma crítica “violenta” ao consumo desenfreado que assola e desnorteia a humanidade dentro dessas catedrais da nossa era.
O acúmulo desses carrinhos nas paredes da sala de exposição, nos faz lembrar a obra de artistas como o francês Arman (Arman Pierre Fernandez, 1928 - 2005) e dos brasileiros Bispo do Rosário ( 1911 - 1989) e José Leonilson (1957 - 1993) que tinham em comum nos seus processos artísticos, recolher e agrupar objetos do cotidiano. Desta forma Luiz Hermano expressa o seu desejo de reordenar o mundo ao acumular, catalogar e reorganizar objetos industrializados os mais diversos. Depois leva esta matéria acumulada para os seus trabalhos relacionando-os, amarrando-os e arquivando-os em sua obra.
Estes materiais surgem e são organizados de maneira a nos provocar e evocar questões existenciais. Os carrinhos causam estranhamento ao serem dispostos em fila, lado a lado e amarrados artesanalmente como em uma teia assumindo formas como colunas vertebrais, o símbolo do infinito ou simplesmente agrupados como em um quadro, formando uma massa homogênea onde se confunde com o rendilhado ou o emaranhado das varinhas de metal.
Esta amarração tosca confere um aspecto artesanal à obra de Hermano. É a mesma linha que vem sendo trabalhada desde suas primeiras gravuras, depois continuaram nos desenhos e acabam nas esculturas. É a linha que toma corpo. Que vem para o espaço nas formas tecidas, costuradas, amarradas e feitas de materiais diversos como o arame, o alumínio, o ferro e o plástico.
Com o arame Hermano cria tramas que são ao mesmo tempo geométricas e orgânicas. Rígidas e moles. Tramas que se transformam em esqueletos, vértebras, vigas, cubos, quadrados, rendilhados. No entanto é a linha que passa por tudo. Que delineia tudo.
Hermano parece travar uma luta com a rigidez dos materiais, a geometria e a organicidade vistas em suas esculturas e objetos. Este embate fica evidente na série dos cubos moles feitos de alumínio. A matriz é geométrica, rígida e abstrata. Mas ao levar para a parede estas estruturas articuladas adquirem uma forma mole, que se molda ao serem dependuradas. Adquire a forma de um tecido que pende e se movimenta para chegar ao chão em uma ação da força da gravidade. Não são nem pinturas, nem esculturas. Estariam mais para instalações que dão forma à matéria. Ficam pendentes nas paredes. Como um tecido dependurado por dois pregos nas suas pontas. Com o tempo adquire uma forma preguiçosa e mole ao ceder para o próprio peso.
O artista ingressou na universidade para cursar filosofia sem, no entanto, terminá-la. Então, pensar no que faz no que resulta como arte o seu trabalho “laboral”, é a prática artística de Luiz Hermano. Ao divagar no pensamento o artista nos coloca questões éticas e morais da nossa passagem pelo mundo. Faz-nos pensar no nosso dia a dia. Joga-nos diante de nossas aflições como sociedade contemporânea onde os valores máximos hoje passam a ser os materiais e o individualismo. O sucesso é material, e o fracasso?
Nem pensar! Não se pode assumir o fracasso em uma sociedade na atualidade que mede tudo pelo que se compra pelo que se consome, que é a medida do sucesso. É a sociedade capitalista que acredita que a felicidade é conseguida através do dinheiro, do que se compra e do que se possui. Ser e ter.
Estas questões contemporâneas incomodam o artista, apesar da transparente calmaria. Sua figura internamente é inquieta e busca conhecer e questionar em um ímpeto que o leva de tempos em tempos a deslocar-se pelo mundo. De um lugar para outro para conhecer as diferenças de outras culturas que acabam por alimentar sua obra.
Informar esta trajetória nos ajuda a compreender o universo visto na obra do artista, uma mescla de informações que traz da vida no interior do estado do Ceará e da vida urbana caótica que leva em uma cidade como São Paulo. Este é o seu espaço e ambiente imaginário, o lugar onde se dá sua obra.
A artesanalidade que é vista nos trabalhos do inicio, permanece. As estruturas que povoam o seu ateliê guardam a mesma manualidade, têm a mesma feitura, a mesma trama e as mesmas amarras feitas dos cipós e dos galhos que davam forma nas suas armadilhas e gaiolas de quando morava no interior do Ceará.
A partir de intensa pesquisa e busca por novos materiais, Luiz Hermano apresenta ao público a retomada de uma fase inicial de seu trabalho nos desenhos e esculturas. A busca de uma geometria torta que pende para um lado, como nos Icebergs e na torre feita de carrinhos de supermercado. Sua produção tridimensional revela-se como outra possibilidade de representação de seu desenho. Logo, tudo que o artista produz, em sua própria concepção, seria o desenho que saiu do papel. É a linha que ganhou forma no espaço e traz as heranças do construtivismo geométrico. Hermano parece brincar com as formas geométricas ao querer desconstruí-las da sua rigidez. O elemento forte, portanto, do seu trabalho além da matéria, são as linhas que conduzem todo o processo de criação e definem este corpo mole que se transformam suas peças. Saem do papel, vão para o chão e para a parede, preenchendo todo o espaço criado dentro de sua obra.
O caráter frágil sob o qual esta fase de sua produção está associada, a forma como é construída a trama de fios ou a organização dos pequenos brinquedos, ao mesmo tempo em que exibe peças em grandes proporções, também é expresso algo delicado e sem muita solidez, criando um contraponto à dureza do mundo contemporâneo.
Luiz Hermano não se apresenta com um discurso rígido sobre o consumismo mesmo quando trata de questões que envolvem maior seriedade plástica.
Ricardo Resende
Diretor Geral do Centro Cultural São Paulo