Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

David Magila

No quase platô

Mário Gioia

Para a nova individual no Marp (Museu de Arte de Ribeirão Preto), David Magila ancora sua obra em dois vetores poéticos protagonistas: por um lado, prevalece a melancolia resultante da construção de arquiteturas precárias, de solidez tíbia e que rumam para a impossibilidade; em outro sentido, o traço do desenho migra para outras linguagens, como a pictórica e a tridimensional, mas, por fim, nunca deixa de ser fundamentalmente desenho.

O artista paulista que viveu em algumas fases da vida no litoral do Estado incorpora tal deslocamento no seu processo de criação e cria elos com caminhos mais laterais da história da arte brasileira, em que o silêncio e o tom menor são mais evidentes – e que talvez por isso tenham sido reconhecidos mais tardiamente.

A arquitetura é chave para esse dado da produção de Magila. Pois se a modernidade arquitetônica nacional criou momentos de glória especialmente na primeira metade do século 20, possibilitando o aparecimento de obras-primas de nomes como Niemeyer, Reidy, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, a fragilidade do planejamento urbano, o fracasso de políticas inclusivas em variados âmbitos e o crescimento populacional, entre outros fatores, terminaram por forjar um embate com o espaço, algo subterrâneo e simplório na urbe brasileira.

Tais exemplos abudantes nos arrebaldes de grandes metrópoles têm menos a ver com a autoconstrução de comunidades, por exemplo, onde há bons casos desse morar ‘popular’ (mesmo com a omissão do Estado), e se relacionam mais com uma certa classe média de gosto duvidoso. Pegue-se isso e una a um poder público pouco criativo, que paga o menor preço e peca em gestões das mais diversas, e está colocada uma situação de cidade ordinária, pontuada por porcelanatos brilhantes, telhas feitas de amianto tóxico, paisagismos que mais se assemelham a terrenos baldios etc.

Assim, hexágonos de piso cinzento sempre escapam de calçamentos e vias, em que máquinas de limpeza, correção e ordem estão entregues à própria sorte. Pneus escapam do descarte e viram decoração de edificações que se erguem com agilidade para cima, mesmo que suas fundações sejam pouco confiáveis. Antenas de TV por assinatura ornam fachadas em cores pouco harmônicas, que convivem com anacrônicos telhados de módulos cerâmicos, supostamente para atribuir à construção um rosto mais doméstico. Nessa paisagem desanimadora, pode se juntar uma especulação imobiliária da mais daninha, a marcar, por todos os continentes, a mesmice de prédios de grande escala, sem comunicação com o entorno e com a memória do lugar, cujas lajes muitas vezes não abrigam nada produtivo. “O produto construído (…) da modernização não é a arquitetura moderna, mas antes o espaço-lixo. O espaço-lixo é o que resta depois da modernização seguir o seu curso, ou mais concretamente o que se coagula enquanto a modernização está em marcha, o seu resíduo” 1, escreve Rem Koolhaas.

A partir desse cenário de quase apocalipse urbano, Magila, como um bom artista contemporâneo, não se furta. Trabalha cotidianamente, com suas ferramentas, a extrair inquietações desse panorama. Em termos formais, não esquece o desenho e suas possibilidades gráficas, que resistem, não se esvaem. E por um procedimento interessante: decalques via papel carbono baseiam as pinturas de grande escala que realiza. Enfatizando a qualidade processual, a ação do lápis se manifesta, mesmo vista apenas de um olhar muito próximo. A mistura de materiais, como a acrílica, o carvão e o grafite, geram um resultado movediço, que transita entre meios, deixando uma certa incompletude como condição (a fotografia como imagem fundadora se traveste, então, apenas de indício).

E uma mudança interessante no lidar com objetos e instalações, agora, é uma concretude mais frisada. Se em sites specific anteriores, como Isso lá é verdade (2013), transparecia uma vontade tridimensional (e a configuração de uma grande embarcação cerrada numa parede de um cubo branco tinha um lado surrealista interessante), hoje peças como a série Iscas (2015-16) se as- sentam num diálogo relevante entre o criar e o desmanchar, a solidez e a ruína, o projetual e o efetivo. Daí esse tom melancólico, tão importante na linha evolutiva da arte brasileira (lembremos de Goeldi, dos imigrantes do Santa Helena, de Ivan Serpa, de Evandro Carlos Jardim e, atualmente, de Daniel Caballero), que David Magila habilmente trata e não se esquiva, num movimento contínuo e diário de reinvenção.

1. KOOLHAAS, Rem. Três Textos sobre a Cidade. Gustavo Gili, Barcelona, 2010, p. 69

 

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