Fragmentos de um discurso pictórico
Mario Gioia
Atestar o vigor de uma linguagem visual na contemporaneidade parece ser uma tarefa que beira o anacrônico. Afinal, em tempos multifacetados, de ambicionada pluralidade e de hipercirculação em variados âmbitos, seria natural que cada medium tivesse suas especificidades transparentes e à mostra sem muito esforço. Contudo, no mundo real e conflagrado, um almejado convívio de suportes (para utilizar uma terminologia hoje não tão usada) na visualidade atual por vezes se assemelha a um dado utópico, outras vezes quase se desenha como improvável. Porém, desejamos resistir e avançar contra o senso comum (que não deixa de espreitar as artes, é bom realçar).
Fragmentos de um discurso pictórico1 também se afirma como uma exposição coletiva que exibe obras de 13 artistas de diversas gerações, pesquisas e abordagens que muito se fundamenta nos atributos que cada trabalho gera de leituras por ele mesmo. E, reunidas neste determinado recorte, tais obras podem provocar situações, elos e relacionamentos que anteriormente não se apresentavam tão facilmente, agora ganhando um novo contexto, outros entornos e mais perspectivas e olhares.
Deve ser frisado também que a curadoria acompanha atentamente não de agora os percursos de Ana Elisa Egreja, Antonio Lee, Cela Luz, David Magila, Eloá Carvalho, Fabio Flaks, Fabio Miguez, Felipe Góes, Giulia Bianchi, João Gonçalves (João GG), Lara Viana, Ricardo van Steen e Sérgio Sister. E, sim, há componentes de afetividade, familiaridade e admiração nas escolhas, sempre carregadas de subjetividade. Uma exposição coletiva também se presta a trocas que escapam do mercadológico e do instantâneo, construindo redes, transformações e contaminações reiteradamente fecundas.
Uma exposição certamente é um testemunho de seu tempo. Assim, um dado pessoal relevante é que, mesmo jovem, foi decisivo acompanhar de alguma maneira a celebrada geração 80, conhecida como a da pintura, mais de perto em seus desdobramentos na década seguinte – período que também a rejeitou com alguma força - e, mais tarde, perceber o diálogo existente entre veteranos daqueles anos e emergentes artistas de um campo ampliado do que ficou conhecido como coletivo 2000 e Oito.“Eu reivindico um estatuto experimental para o meu trabalho”2, argumentava, com razão, Miguez, frente a um preconceito de alguns círculos institucionais em relação ao pictórico, já no ano de 2009.
Hoje, depois de inúmeros acompanhamentos de artistas por muitas regiões do país, júris de editais, salões e iniciativas similares, sem contar a produção que chega dos cursos de artes visuais (dentro e fora do Brasil), não é falacioso dizer que a pintura vive, e bem, em nosso circuito3. Frente ao fotográfico, ao vídeo, ao gráfico, ao performático, ao impresso e aos sem-número de hibridismos entre meios tão desenvolvidos atualmente, a pintura – tradicional, impura, livre, instalativa, selvagem, expandida, de experiências imersivas, digital etc – não deixa de ostentar seu fazer sedutor, em locais tão severos ou caóticos como o ateliê de um artista, em ritmos mais disciplinados ou menos longevos, de maneiras mais ordenadas ou intuitivas, entre pincéis, campos de cor, luz, paletas, pantones, pixels, mãos e mentes.
1. O título foi anteriormente utilizado pelo autor em texto presente em VÁRIOS. Bettina Vaz Guimarães. Santiago de Compostela, Dardo, 2012, p. 12-16, e se inspira em Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes (1915-1980).
2. GIOIA, Mario e MARTÍ, Silas. Tinta fresca. Folha de S.Paulo, caderno Mais, 23.ago.2009, p.E4
3. O autor agradece a interlocução de jovens críticos, curadores e artistas que ficaram à frente de mostras com escopo semelhante, como Fernanda Lopes (Sorria!, Rio de Janeiro, 2017), Raphael Fonseca (Figura Humana, Rio de Janeiro, 2014) e Bruno Miguel (A luz que vela o corpo é a mesma que revela a tela, Rio de Janeiro, 2017)
Mario Gioia (São Paulo, 1974)
Curador independente, é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. Foi crítico convidado de 2013 a 2015 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012. Em 2015, no CCSP, fez a curadoria de Ter lugar para ser, coletiva com 12 artistas sobre as relações entre arquitetura e artes visuais. Já fez a curadoria de exposições em cidades como Brasília (Decifrações, Espaço Ecco, 2014), Porto Alegre (Ao Sul, Paisagens, Bolsa de Arte, 2013) e Rio de Janeiro (Arcádia, CGaleria, 2016). É colaborador de periódicos de artes como Select e foi repórter e redator de artes visuais e arquitetura da Folha de S.Paulo de 2005 a 2009. De 2011 a 2016, coordenou o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Na feira de arte ArtLima 2017, assinou a curadoria da seção especial CAP Brasil, intitulada Sul-Sur.