Roberto Alban Galeria

Mãe da Lua

Adriana Coppio

Exposição28/Abril até 10/Junho, 2023

Olho mágico

José Augusto Ribeiro

A estranheza na obra de Adriana Coppio é construção, surge dos processos de feitura do trabalho, mais que dos motivos que a artista escolhe para figurar. Uma descrição objetiva diria que este é um conjunto de pinturas e desenhos produzidos a partir de imagens prévias de situações, até segunda ordem, prosaicas. Uma parte toma como referência fotografias de álbuns de família, dos retratos de pessoas comuns, dos registros de um dia ou de uma situação especial na vida de crianças e de adultos anônimos ou que têm parentesco com Coppio. Outra parte mira atenção em reproduções feitas pela artista ou, na maioria, selecionadas por ela em meios digitais e impressos de paisagens, de céus e nuvens, de morcegos, aves, de um sapo, uma mariposa, um caramujo, uma árvore, de cactos, de um balão, da fachada de uma casa, da fachada de uma igreja, interiores domésticos, um bibelô... Seres, lugares e objetos até aqui banais, comuns, que despertam a curiosidade – como despertaram a da artista – por mediação da fotografia, principalmente. Pela disposição atípica e pelo caráter dúbio que esses elementos assumiram em enquadramentos específicos; pelo que deram a ver de suas características físicas quando observados desse e daquele ângulo; pelas cores com que se cobriram quando reproduzidos na respectiva imagem; pelo passado a que reportam; ou, de maneira geral, pelos clichês que repetem integrados àquela composição fotográfica (clichês sobre beleza, felicidade, lazer, sobre os fenômenos diários da natureza, mas também sobre certos exotismos).

Eis então que, transfigurado na obra de Adriana Coppio, o que seria tido por trivial e corriqueiro, o que talvez inspirasse uma pureza de conduta e de sentimento, apresenta-se enigmático e sinistro. Da inocência e do encanto da infância, da religiosidade angelical e comunitária, vazam também perversidades. A aparente singeleza de uma circunstância, um gesto, um item decorativo, revela-se, como nunca, vulgar, cafona, incômoda mesmo. Nem são propriamente reviravoltas o que ocorre com esses materiais, com essas cenas. Antes, é a pintura de Coppio que instila, com os recursos de que dispõe, uma atmosfera de mal-estar, suspense e mistério nessas unidades de ação.

A começar por uma luminosidade fluorescente e artificial que invade o espaço das telas. Essa luz – de uma anunciação, uma radiação nuclear? – vem por trás das figurações e se intromete aos poucos, pelas frestas, entre os motivos da pintura, até chegar, às vezes sólida, chapada, ao primeiríssimo plano – veja só, na porta de uma igreja católica ou na entrada de uma arquitetura cilíndrica que, com o telhado avermelhado, lembra um cogumelo (ou pênis gigante) e, logo, poderia ser a casa de um duende. Essa intensidade psicodélica que trespassa as imagens de Coppio decorre do modo como a artista prepara suas telas para a realização do trabalho, por meio de um preenchimento homogêneo do "fundo", que sela a trama do tecido, com tinta acrílica nas cores amarelo, verde ou rosa.

Os efeitos cromáticos da operação, ao mesmo tempo que conferem uma ambiência ácida, desconfortável, para os motivos da pintura, dão aos resultados um pouco da aparência de impressões gráficas de fotografias e ilustrações coloridas de livros e revistas do período entre os anos 1950 e 1980. E, nessas soluções, o trabalho toma de empréstimo um aspecto envelhecido – nem anacrônico nem passadista, mas acumulador de tempos, com percepção e temperamento que só seriam formados hoje. Essa é, aliás, uma experiência bastante contemporânea: a da lida, por meio de uma pintura interessada em imagens fotográficas, cinematográficas e digitais, com um tempo cada vez mais acelerado e com passados que, em vários sentidos, se manifestam de maneira fantasmática –com questões em aberto, com dimensões ficcionais, ao produzirem, hoje, movimentos obsessivos, ao evocarem fenômenos sobrenaturais – e que, assim, teimam em fazer suas aparições e assombrar o presente.

De fato, várias imagens na obra de Adriana Coppio arrastam, junto, a passagem do tempo – uma reminiscência, um discurso afetivo e, em algum momento, a morte. O que rondaria o desenho que reproduz uma fotografia daquela dupla de crianças sentada sobre uma pedra? A estima de uma amizade, as experiências de uma viagem, as promessas para o futuro, a notícia de um crime, o prenúncio de uma tragédia? Ou essa é uma ideia plantada na cabeça do observador, como reflexo de certa linguagem do jornalismo e de documentários televisivos ou cinematográficos que condicionou leitores e espectadores a vislumbrar histórias pessoais em fotografias do passado de uma pessoa que não é pública, que sequer conhecemos, e cujos sorrisos são usados para gerar identificação e comoção durante a narrativa, sei lá, de enredos funestos? É fato que qualquer fotografia de um passado remoto carrega no bojo, queira ou não, o fim de algo e de alguém. As crianças vestidas com fantasia de coelho, presentes na exposição, estão em festa enquanto dançam diante de árvores lambidas pelo fogo? O pavão posto contra uma tábua de madeira faz o quê? Bicho e coisa rivalizam formas, estampas, manchas, veios, cores, padrões, até que as distinções entre um e outro se desmanchem na parte inferior da pintura? Seria esse um tipo especial de desaparecimento, pelo contraste entre duas exuberâncias? Porque não há desenho que anteceda à pintura de Coppio, e as figuras pintadas por ela, em consequência, não têm contornos claros e resolutos.

No processo de realização, as sobreposições de cores são notáveis pelas transparências – o que esquenta a imagem, de maneira geral. Já as distinções entre corpos, coisas e espaços são sutis e incertas, dão-se por passagem cromática e pelo direcionamento das pinceladas. Os limites entre uma figura e outra flamejam, vibram. E essas decisões, não raro, tornam a imagem inteira embaçada, com o aspecto de uma visão através de lentes e fora de foco; como se aquela estrutura complexa da pintura se organizasse para preparar com cuidado e expor com firmeza imprecisões, uma suposta falha, um suposto erro.

Antes ainda de concluir o curso de artes plásticas na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), em São Paulo, no final da década de 1990, a pintura de Adriana Coppio começou a ocupar uma posição singular no meio artístico da cidade. Atenta a obras de artistas contemporâneos em atividade naquele momento na Europa e nos Estados Unidos – principalmente as de Gerhard Richter e Luc Tuymans, que, para este efeito, talvez possam ser sumariamente agrupadas entre pinturas realizadas com base em reproduções fotográficas e com paletas de cores frias, rebaixadas –, Coppio se encontrava, na capital paulista, entre um número relevante de pintoras e pintores dedicados a pesquisas com os gestos e os materiais dessa linguagem (a pictórica), com formas abstratas simples, com jogos diagramáticos entre campos de cor, com as possibilidades de textura das tintas e das superfícies (se lisas ou ásperas, homogêneas ou irregulares, com muita ou pouca matéria etc.); alguns deles interessados também em levar a pintura a outras superfícies além da tela – e não exclusivamente planares.

Somente depois, no final da década de 2000, surgiriam em algumas cidades do país grupos de artistas recém-formados e com ânimo para especular sobre as condições de uma pintura figurativa àquela altura. Agora, é muito curioso como a suplantação de falsos moralismos pelo trabalho de Adriana Coppio saltou em evidência nos últimos quatro ou cinco anos, quando a obra da artista voltou a circular com frequência e visibilidade pública significativas. Essa ambiguidade que se encontra em sua pintura e que suspende o estado das coisas entre o corriqueiro e o assombro, o puritanismo e a crueldade, a candura, o kitsch e a violência, talvez tenha mesmo muito a dizer sobre o Brasil recente, onde a defesa de comportamentos e padrões morais rígidos está de novo a ser feita, com publicidade, por gente cínica, obscena, agressiva, corrupta e engastada em preconceitos. A despeito da revolta que acende, esse monte de mentiras, brutalidade e vigilância parece parte de uma alucinação. Mas está corrente.

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