Roberto Alban Galeria

Pinturas

Célia Euvaldo

Exposição04/Setembro até 23/Outubro, 2021

Instáveis, incertas, íntegras

Ronaldo Brito

As telas de Célia Euvaldo começam como uma presença física e ostensiva. Só que, evidentemente, não têm princípio, meio e fim. Nem um pouco narrativas, elas procuram sustentar ao máximo seu pleno aparecimento. E porque precisam atrair e intrigar uma percepção atenta, que as acompanhe e faça justiça, dependem da capacidade renovada de se problematizar. Visivelmente, resultam de momentos pictóricos díspares senão conflitantes. Na condição, porém, de que terminem todos juntos! Em suma, seu destino é perseguir, de novo e a cada vez, sua realização incerta.

À medida que controla seus meios e modos, domina sua artesania e delimita seu território poético, todo artista corre o risco de esterilizá-los. Risco notório, trivial e terrível. No caso de Célia Euvaldo, esse risco agrava-se em escala considerável; o perigo ronda, iminente, esses grandes quadros que só se resolvem a quente, no ímpeto do instante. Daí seus procedimentos restritos, francos e diretos, consoantes uma disciplina estética que pretende fazer coincidir intenção e ação. Nada há de ficar latente ou oculto: tudo deve se expor à superfície. Os supostos acidentes menores, as incidências matéricas fortuitas, a demandar um olhar próximo e inquisitivo, contam como fatores de inervação nessa pintura que não desiste de ativar uma percepção qualificada, transformadora de mundo.

A tela arma um campo de forças plásticas cuja natureza é necessário e imprescindível especificar. Ao contrário de uma primeira e falsa impressão, não se trata de manchas informes, expressivas, a revolver dilemas subjetivos. Tampouco, entretanto, assistiríamos à busca por uma protogeometria, o princípio originário de formação da Ordem. À sua maneira, essas telas praticam uma topologia atual, a todo custo querem envolver e tornar indissociáveis gestos, suporte e superfície. Não contemplamos o mundo à distância: tomamos parte ativa nele. A pergunta pela forma será portanto, desde logo, operatória. Pela mesma razão, essas operações assumem caráter cognitivo e afetivo, a conferir o conteúdo de verdade e a vitalidade dos acontecimentos plásticos que vêm a produzir. Já o óleo um tanto rude que empregam responde a apelos corpóreos, a aguçar nosso senso de presença atuante no mundo.

Ao longo do tempo, o trabalho de Célia Euvaldo vem nos desafiando por meio de um duplo e exclusivo exercício perceptivo, entre o preto demasiado cheio e o branco (enganosamente) vazio. A recente e súbita intervenção de cores abertas – que chegaram de dentro para fora, sem compromissos extrínsecos – exigiria, ou não, uma releitura radical que retome o trabalho desde o início? Se fosse este o lugar, haveríamos de nos estender em uma digressão crítica. Por ora, constatemos somente a inépcia do clichê: ausência de cor. Como assim? Pretos e brancos têm suas respectivas luzes, e brilham. A copresença de vermelhos, amarelos ou azuis complica, sem dúvida, o desfecho das telas, ao mesmo tempo, de pronto as individualiza. Um quadro vermelho não é um quadro azul. As cores intempestivas imprimem a cada um deles certo tônus existencial, temperamentos distintos. O que, nem de longe, altera o núcleo de sua personalidade artística. A meu ver, e aí incidiria o argumento decisivo, as cores vibrantes surgem como fatores a mais de irritação e questionamento em uma pintura que opera numa área exígua e tira sua força ao vencer, repetidamente, a ameaçadora entropia. A questão substantiva passa a ser a seguinte: como agem esses contrastes cromáticos, às vezes gritantes, em um espaço pictórico que até então se resumia às invasões maciças do preto sobre o branco, a renegociar os limites entre a forma e o informe? Assim como ocorre com o preto marfim, também as cores abertas não destilam uma química de pintura, empenhadas em revelar a identidade única deste violeta, desse laranja ou daquele azul. Elas irrompem no quadro, resolutas, instintivamente misturadas e diluídas. A sabedoria consiste em achar sua “temperatura”, o grau de intensidade que as confronte e aproxime aos pretos e brancos com os quais se estranham e convivem. Muito menos funcionariam como sinais gráficos, nítidos, positivos, a guiar um processo formal, de antemão, seguro de si. Pelo contrário, como prova sua fatura rápida e líquida, em tudo oposta ao preto matérico, castigado de ranhuras, elas introduzem uma descontinuidade flagrante nessas telas que, justo porque sustentam uma forma instável - não cedem, enfim, a uma prévia harmonia - se mostram tão íntegras.

 

Raro rigor

Paulo Sergio Duarte

Quando um artista marca sua obra com forte caráter nós a reconhecemos imediatamente; à distância mesmo. Antes de qualquer psicologia, Ferrater Mora nos ensina, que "o termo ‘caráter’ significa marca ou nota que assinala um ser e que por isso o caracteriza diante de todos os outros."  Este é o caso do trabalho de Célia Euvaldo, sempre marcado por raro rigor. Quem está em contato com a pintura contemporânea no Brasil, e não são poucas as pinturas poderosas presentes no interior desse vale-tudo infernal que se tornou o meio de arte, entra numa sala de galeria, museu ou qualquer outra instituição e, se existe um desenho ou tela da artista, este logo se distingue. Os artistas que alcançam essa marca devem exclusivamente à potência poética que os individualiza. Não é exagero que essa marca foi obtida por uma rara e rigorosa economia de meios, sobretudo na sua conhecida e reduzida paleta, durante muito tempo, comprimida a duas cores: o preto e o branco.

Essa obra que já percorre quase quatro décadas, se tomarmos como ponto de partida sua participação numa exposição coletiva no Solar Granjean de Montigny, na PUC-Rio, em 1981, passa por um longo processo de aprendizado e de experiências realizadas por uma artista absolutamente consciente de seus meios, recursos e procedimentos, como é demonstrada na Cronologia que redigiu para seu livro Célia Euvaldo.  

Insatisfeita, no melhor sentido, Célia volta a nos surpreender, agora, nessa exposição no Rio de Janeiro, em 2017. Além das colagens malevitchianas, surpresas também, por um rigor geométrico que nas suas pinturas nunca foi uma preocupação presente, surgem as pinturas com aguadas. Estas despertam um interesse particular para a experiência estética na sua obra. O preto impõe-se com sua presença já conhecida no trabalho e a aguada, em cores tênues, delicadas, diria mesmo, discretas, contraria a imposição do preto, pela sua delicadeza. Como em Rothko ou em muitos trabalhos de Mira Schendel, é como se estivéssemos flagrando o aparecimento da arte no mundo. Temos então duas relações simultâneas e opostas quando estamos diante dessas obras. O preto como se sempre estivesse lá, uma arte que estaria no mundo antes de nós tal a força de sua presença, enquanto a aguada nasce, vem ao mundo, no momento mesmo em que a olhamos. Toda uma nova experiência poética surge nesses novos trabalhos de Célia Euvaldo.

Permitam-me uma digressão antes de voltar à obra da artista. Num texto bastante conhecido, o filósofo Giorgio Agamben interroga "O que é o contemporâneo?".  Logo nos adverte: "Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela."  Mais adiante afirma: "Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade (...)." "Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade."  Concluindo a apresentação de seu seminário, o filósofo nos diz: "É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora." 

Ocorreu-me que a obra de Célia Euvaldo poderia ser vista como uma metáfora visual do pensamento do filósofo e, mais que isso, absolutamente contemporânea segundo as exigências do que é ser contemporâneo. De acordo com a artista, no princípio, seus trabalhos eram multicoloridos. Portanto, aderindo a seu tempo sem dele tomar distância. Era a época do retorno à pintura onde, não só aqui no Brasil, mas especialmente na chamada Transavanguardia italiana, multiplicavam-se as telas multicoloridas, muito decorativas, para alegria de marchands e arquitetos de interiores. Logo que se afasta dessa adesão, surge a cor negra em procedimentos variados, todos muito pessoais que logo marcam o caráter único do trabalho, durante mais de vinte anos. A escuridão do presente aparece com força diante de nossos olhos. E é sobre essa escuridão que a artista fixa sua atenção explorando-a numa extensa aventura pictórica. Sem esquecer o quadrado negro de Malevich (1916) e os quinze anos de telas negras de Ad Reinhardt, durante os anos 60, a corajosa pintura da artista se inscreve do modo mais legítimo nessa tradição. Agora, nas pinturas com aguadas mais recentes, surgem, à sombra, outros resultados dessa corajosa experiência.  

E, repito, a artista explora duas formas de a arte estar no mundo: a potente presença da cor negra e os delicados aparecimentos das aguadas. A fratura dessas duas formas está presente e é a essência dessa contemporaneidade e do próprio trabalho. Preparemo-nos para novas experiências sempre apresentadas com raro rigor.

 
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