Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Adriana Coppio

Restos noturnos

Mario Gioia

Folhagens que parecem ter rostos em sua configuração. Imagens líquidas de infância, esmaecidas em cinza ou com matéria bruta em destaque. Estatuário antropomórfico em aparente estado de ataque. Um ovo de arraia deixado na areia. Paisagens montanhosas com vestígios rupestres. Diversos elementos que predominam na pintura de Adriana Coppio carregam uma atmosfera de sonho e, caso sejam vistos conjuntamente, lembram os exercícios cadavre exquis dos surrealistas, experimentos de marcada liberdade e grande ar inventivo. Na contemporaneidade, a produção pictórica da artista paulista remete a tais procedimentos de fortes elos com a imaginação, mas hoje podem se relacionar com a fragmentação e multiplicidade de quase tudo ao nosso redor, ao trânsito fácil entre variados meios, estados e linguagens e a uma desorientação típica desta era. “Sou contra as expressões ‘fantasia’ e ‘simbolismo’ em si mesmos. Todo o nosso mundo interior é realidade _ e talvez mais do que nosso mundo aparente” ¹, bradava, em 1944, Chagall (1887-1985).

Nessa trajetória particular, Adriana cria alguns momentos mais perceptíveis, com fases, séries e temáticas em relevo. De início, a infância se impunha, e veio na forma de telas de grande escala – O Mar (2006), de 1,50 m x 3 m, talvez seja a mais conhecida. Nelas, é perceptível a habilidade da artista na composição da cena e no domínio da acrílica, de resultados ágeis e que, contudo, exige uma destreza temporal no trabalho no quadro. Também elogiável, e isso irá se desenvolver mais, é que o labor da artista na construção de camadas e de tons cromáticos fará com que haja uma sensação de uso de óleo, por conta de uma ‘vontade’ de adensamento, mesmo com a utilização de um material menos propenso a isso.

Afora as condições formais, irão se fortalecer e se repetir em outros momentos alguns traços caros à artista, como os personagens não olharem frontalmente para quem captura a imagem, ou, se a encararem, terem o rosto desfeito, em desmanche, quase pendendo para o disforme nessas paisagens cinzentas. Há exceções, mas elas só confirmam a perspectiva que beira o fantasmático – o quinteto protagonista de Ilha das Garças (2015), imerso em águas muito longe da claridade, tem um olhar que nos fita e nos desafia, como a entoar um canto das sereias, porém ao reverso. E os animais retratados – como os de A Casa do Pato (2014) e Hierofania (2016) - podem nos levar para outras paragens, se assemelham a habitantes de outros lócus – mesmo que os de baús, gavetas e poeira das memórias de cores gastas ou, para quem se aventurar, de planos outros na proximidade de leituras místico-espirituais, temática tão cara a destacadas artistas mulheres. Crianças, em um jogo de inocência e perversidade, ostentam asas exibidas em festejos religiosos de outrora ou que são puramente coisas lúdicas do dia-a-dia, apetrechos do brincar – como em Irmãos (2014) e Aparição (2014), por exemplo.

Numa segunda fase do corpus de obra de Adriana, em que ela mostra a produção em exposições individuais como Fogo-Fátuo (Nova Lima, MG, 2017) e Eclipse Ordinário (Casa da Luz, SP, 2019), a infância e a utilização de cinza e azul mais escurecidos são minoritários. A artista também opta por escalas médias. Os recortes, então, guardam essa sensação de descompasso tão presente em sua pintura, mas com uma âncora no aqui e agora, o que deixa essas distopias feitas a pincel ainda mais pungentes. Também se acentua a ambiguidade, já que esse clima de estranheza e desencaixe talvez esteja apenas a cargo da imaginação do observador. A pintura que dá título à apresentação no espaço mineiro resume tal sentido. O fogo-fátuo pode ser encarado para alguns como um fenômeno enigmático e que traz à tona vestígios extracorpóreos, porém deve se resumir a um mero efeito de decomposição, comum nos âmbitos químico e biológico. De toda maneira, o panorama em verde e dourado encaminha uma existência parca, de contornos e volumes se esvaziando.

Na Casa da Luz, a dubiedade da obra da artista ganhou realce, explicada pelo lugar onde as pinturas foram exibidas. O centro cultural ocupa as antigas dependências de um antigo hotel, de priscos dias já há muito, e que se reergueu depois de invasões, habitações coletivas, semicolapsos etc, agora pulsando com um ar underground. Em meio a balaústres de madeira de lei, tetos geometricamente esquadrinhados e paredes de tintas gastas, as telas de Adriana ganharam novas ressonâncias. Potentes dessa fase, o quadro sem título, de 2017, com uma cabeça bovina ‘servida’ em acessórios geométricos, Folhagens (2017), com sua fisicalidade rizomática a se espalhar como um alien, Trepa-Trepa (2017), com seus protagonistas encapuzados a se equilibrar numa estrutura vazada, e, especialmente, Estrelas (2016), com as sombras enigmáticas a fitar uma paisagem estrelada, tendo como centro uma estrada de chão batido, geram fricções, instabilidades e perturbações quando dispostos em conjunto. “Pois não há despertar sem o sonho do qual despertamos. O sonho no momento do despertar torna-se então como o ‘refugo’ da atividade inconsciente, esse refugo insistente no qual Benjamin não ignorava que fora convertido por Freud no elemento central de sua Traumdeutung [interpretação dos sonhos]” ², escreve Didi-Huberman.

Já em sua etapa mais recente, Adriana Coppio volta a apostar também em dimensões maiores, obtendo uma ambivalência desejada em trabalhos como os maiores de Cárpatos (2019) – há distintas escalas na série. A de número 5, de 2,30 m x 1,35 m, guarda uma interessante despretensão com aproximações de traços à moda da pintura rupestre – e, talvez, do tempo impresso nessas paredes antiquíssimas. A série possui uma predominância de bege e dourado, cromatismos a conversar com o arcaico, com a matéria mais sedimentada. Já Cárpatos 2 e 3 (ambas de 2019) lembram Bryce Canion Translation (1946), do surrealista Max Ernst (1891-1976). Feliz pertencimento, nesse lidar entre o vernacular e o estrangeiro, o local e o universal, o inanimado e o vivaz, o terreno e o galáctico. Mas tudo tão imensamente humano.

1. CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. Martins Fontes, São Paulo, 1993, p. 446.
2. DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que Nos Olha. 34, São Paulo, 2010, p. 189

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