Evocar o nome de um lugar, um bairro, um estado, uma nação para organizar expressões artísticas se configura como estratégia política. Os lugares existem para além de quaisquer definições, mapas, fronteiras. Só precisamos dizer de onde somos para gerar algum tipo de negociação. Ao mesmo tempo, negar a representação de uma parcela identitária para os âmbitos da arte pode dificultar o processo de inserção de determinadas produções no escopo maior ao qual, por exemplo, denominamos arte brasileira. A nação, como afirmara Homi Bhabha, nos convém para preencher vazios, ocupar espaços.
A “fantasia de lugar”, como qualquer fantasia, nos serve para ressaltarmos os traços distintivos, destacados, ornados e substituirmos a experiência de lugar, aquela que não se reduz, a imagens, canções, modos. O Brasil e a Bahia foram inventados como fantasia. Com todo empenho por narrativas épicas, precisamos dizer o que é um lugar, construí-lo como estratégia de afiliação, por mais que nem todos se identifiquem ou sejam identificados. Ao mesmo tempo, o que parece libertário pode se tornar amarra, cacoete, chiste se não deixarmos espaço para inovações, renovações, reinvenções.
A partir da metade dos anos 1980 e com franca intensificação nos anos 1990, a nomeação de lugares antes marginalizados entrara em cartaz nos principais museus e galerias do mundo. Pensava-se em conferir problematizações a tais fantasias: a África depois do modernismo, o Terceiro Mundo, a América Latina, o Islã. As exposições Primitivismo na arte do século XX, Magiciens de La Terre, Cocido y Crud, 24a Bienal de São Paulo (Antropofagia) mostraram que precisávamos incluir outras vozes, outros lugares, outros modos de ver e produzir arte contemporânea. Pensar o lugar é rever, primordialmente, os resquícios formalistas e etnocêntricos, a partir de questões e de chaves conceituais identitárias, como a antropofagia.
A exposição Bahia, contemporânea Bahia, na galeria de arte Roberto Alban, segue este desejo de um modo muito mais específico: pensar a produção contemporânea a partir de artistas que trabalhem desde a Bahia. Não tencionamos afirmar traços específicos, maneirismos ou sotaques. Mas, sim, ativar a presença de um olhar multicultural que também atravessou esta produção, fazendo com que a história de cada artista selecionado tangenciasse em maior ou menor grau os influxos históricos: Almandrade convivera com Helio Oiticica e Paulo Brusky, Willyams Martins começara a produzir concomitantemente a eventos como a exposição que lançou pintores da Geração 80, Lara Viana estudara na Inglaterra nos centros acadêmicos que formaram Damien Hirst, Josilton Tom conviveu com os modernistas da terra e com os longos anos do importante Salão da Bahia. Mas, a história se renova e apresenta as produções de Március Kaoru, pensando a imigração japonesa em Salvador, Vinícius S.A. que expande corajosamente a apropriação dos objetos domésticos para as grandes instalações e Fábio Magalhães, cuja pintura ativa e dissimula possíveis aderências a imagens baianas. Ao mesmo tempo, temos a surpresa de poder contar com um interesse fotográfico e, ao mesmo tempo, instalativo e performático de Rosa Bunchaft que faz da fotografia uma experiência imersiva.
A formação destes artistas é de amplitude a ser notada. Alguns partem de convívios com escolas fora da Bahia e do Brasil, outros apresentam o contato com os eventos independentes, na maioria das vezes, em torno de exposições, grupos, orientadores.
O sistema de arte no Brasil, hoje, ainda está em construção. Por isso, uma exposição como a que nos dedicamos a realizar pode acontecer numa galeria comercial que, para a cidade de Salvador, terá a missão de suprir parte das lacunas institucionais. Hans Belting nos alertara que no momento em que os museus se tornaram tradicionalistas, as galerias abriram-se para ousadas proposições, basta lembrarmos das exposições O vazio, de Yves Klein, e O cheio, de Arman, respectivamente em 1958 e 1960, na galeria Iris Clert, em Paris.
Torna-se necessário, também, atualizar e rever o modernismo de longa duração que ainda predomina em grande parte do Brasil. Sim, é a hora de pensarmos o contemporâneo, por mais problemático que seja o termo, para que possamos recodificar materiais e métodos, poéticas e imagens, abrindo caminho para os que se aventuram.
Március Kaoru
O trabalho de Március Kaoru nos evidencia a potência de um artista dedicado ao fazer. Não aquele que prevê lugares de chegada, repetições, mas o fazer quimérico, juntado pedaços heteróclitos, retirando a matéria-prima e processando-a para adaptações amplificadas. Assim, vemos imagens de sua ascendência oriental coadunadas com um ar, um espírito entre os brinquedos populares e os altares orientais, herdados de pai para filho. Em outro sentido, o uso do bambu o possibilita pintar, gravar, decalcar situações como se estivéssemos lidando entre modos milenares e os meros excedentes de uma sociedade pós-industrial.
Lara Viana
A pintura de Lara Viana observa a tradição como sintoma, como mote a ser citado. Assim, vemos estudos refinados de poses, figuras, paletas que ora encontramos no porcelanato palaciano, ora vivenciamos em pinturas do Rococó. A afetação de trejeitos, abraços, beijos se estilhaça ao percebermos situações que não se completam. O que era imagem, retrato torna-se fantasma. Sabemos que “fantasmas” são encarnações da própria idéia nuclear da pintura: embeber um pano de linho para que acreditemos em flores, louças, corpos que jamais estiveram ali. Com isso, Lara potencializa com grande originalidade uma experiência imagética, ao mesmo tempo, abstrata e fenomenológica.
Vinícius S. A.
A observação da luz é um dos mais recorrentes caminhos que a arte problematizou. Desde a teatralidade do Barroco ao recursos maquínicos da imagem fotográfica, a arte se rendeu ao esplendor luminoso. A luz ativa-nos esferas da religiosidade, da ciência, da intimidade. Vinícius empenha-se nos exercícios de luz e na seleção de materialidades (terras, poeiras, pedras) para propor situações instalativas. Partindo tanto de fatos religiosos (lágrimas) quanto da violência dos panópticos (câmeras de segurança), Vinícius relaciona objetos de descarte e geringonças. Criam-se máquinas e ações do desejo para se chegar ao núcleo das estruturas, como alguém que se interessa por uma estética interna, subcutânea, epitelial.
Willyams Martins
Willyams Martins pesquisa as peles da arquitetura. A arquitetura é e será cada vez mais a pele dos lugares. Hoje, tornou-se necessário pensarmos a sustentabilidade, o aproveitamento da luz solar, da água das chuvas. E a arquitetura se faz pele. Willyams pensa, antes, que precisamos preservar a beleza do que está gravado, subversivamente, nos muros da cidade, nos cárceres. Fatos que o conferiram a alcova de “ladrão de grafiti”, já que o artista inventara uma técnica de resinar os muros e retirar as marcas. Pensar o muro e suas inscrições, a pintura como pele, faz de Willyams um artista interessado em preservar a memória, roubando aquilo que já nasce fadado a desaparecer.
Almandrade
A tão aclamada desmaterialização da arte, a partir dos anos 1960, restabeleceu o modo como os artistas lidavam com a permanência e a procedência dos materiais. Assim, a possibilidade de utilização de formas e objetos mundanos se adequou a modos de circulação das experiências artísticas, na chamada arte postal, por exemplo. Almandrade é um artista que ativa estes interesses históricos, desenvolve imensamente a materialidade de procedência comum, banal, para pensar mensagens, palavras que se tornam poemas-visuais. Pertencente à geração que usava a arte como palavra de ordem, Almandrade manteve-se atento aos campos semânticos, para além da visualidade, produzindo situações que são, principalmente, jogos de linguagem.
Josilton Tom
A madeira, na escultura brasileira, abre um capítulo importante para percebermos o vínculo e o endereçamento da matéria à memória de um lugar. Usada desde a caixa da feira aos mais nobres altares religiosos e salões da sociedade, a madeira pode criar distintas genealogias. Josilton Tom se mostra interessado em toda a amplitude desta matéria: o cheiro, a nobreza, a viralatice. E, assim, se apropria de madeiras novas, usadas, de demolição ou achadas ao relento. Suas peças trazem efeitos brancusianos, simulando partes do corpo, e esquemas como diagramas. De um simples gesto num arame, Josilton cria linhas, segmentos de reta, nós, encontros, observando extensões que se tridimensionalizam como malhas em desenhos quase biológicos.
Fábio Magalhães
A pintura de Fábio Magalhães traz uma sedução evidente: a possibilidade de representação figurativa mais aproximada ao realismo fotográfico. Porém, Fábio subverte esta sedução inicial trazendo relações e referências da história da arte coadunadas com observações sobre práticas cotidianas. Como compreensão de tradições brasileiras, Magalhães funciona como um magarefe, personagem destinado a escarnar animais. Ao mesmo tempo, animais escarnados estão na história da pintura, como o Boi de Rembrandt. As pinturas de Fábio criam, potentemente, distintas filiações. Dos memento mori, Magalhães ironiza a certeza da morte com a sedução de um beijo, mas, antes de tudo, com a perplexidade de um ser perante um lago de narciso.
Rosa Bunchaft
Rosa Bunchaft observa a atividade fotográfica como uma missão dilatada. Faz do ato fotográfico uma atitude performativa. Observa não somente o que será fotografado, mas seu entorno. Atualiza a imagem, pensando-a temporalmente. Calcula a ampliação da fotografia com seu próprio corpo. Cria longas exposições para que a fotografia funcione não somente como um clic definitivo, mas como possibilidade de alargamento do tempo, da mudança na paisagem, da alteração da luz. Com o uso do pinhole, Rosa cria uma outra configuração, utilizando-se de lugares de observação, frestas, janelas, bastiões, observatórios para criar imagens em amplas metragens lineares. Assim, recodifica o que antes chamávamos de imagem panorâmica.